Novas ficções, novas adições?

Eixo- Corpo sexuado no século XXI

Veridiana Marucio

​O avanço da ciência e a lógica de consumo da sociedade atual afeta a relação do sujeito com o corpo – o culto à imagem atrela sucesso, felicidade, aceitação a um corpo ideal. Soma-se a isso o discurso publicitário, que promete um corpo perfeito, eterno, jovem.

​A regência do capitalismo pelas leis de consumo nos leva a questionar se um dos grandes valores contemporâneos não seria o consumo de si próprio, da imagem de si, ou ainda, o consumo simplesmente da imagem do corpo.

​O sonho de controlar o envelhecimento pode agora sair dos filmes de ficção e de certa forma se aproximar da realidade do sujeito hipermoderno. O impasse da transitoriedade do corpo também não deixa de se impor como um enigma. Le Breton diz que esse comportamento de cultuar o corpo esconde um ódio ao corpo real, que lembra a finitude, a morte.

​Como conseqüência desses fatores, percebemos um aumento de sujeitos que se sentem impelidos a adequar seu corpo a um padrão de beleza, e que paradoxalmente, se perdem no anonimato. Transformam-se em mais um, ao modelar seu corpo, tendo em vista um ideal.

​As cirurgias plásticas não são um procedimento recente no campo da medicina estética, mas nas ultimas décadas passaram por avanços importantes, deixando de ser exclusivamente reparadoras para serem modeladoras – as lipo esculturas, que são capazes de fabricar um novo corpo.

​Além disso, temos hoje também procedimentos como, por exemplo: mudança de sexo, redução de estômago, que ao mudarem a relação do sujeito com o corpo, conseqüentemente alteram sua relação com a própria imagem – relação essa que sabemos, através do discurso da psicanálise, se tratar de uma relação sempre problemática. O corpo depende do significante para ser unificado, e essa operação não é plena. Resta algo de fragmentado, que insiste, aparecendo no nível fantasmático.

​O corpo está em evidencia no último ensino de Lacan, o corpo como condição de gozo. Ele atrapalha, por ser limitado. Ao mesmo tempo, está mais visível do que nunca. È um acontecimento.

​Para defender-se desse real traumático, o que tem feito os sujeitos hoje? Quais são as ficções que se tem fabricado quando o que está em jogo não é somente a busca do corpo perfeito, mas construir um corpo cada vez mais distante do corpo real, inalcançável, imortal?

​O fotografo Phillip Toledano tem um série intitulada “A New Kind of Beauty” (Um novo tipo de beleza) que possui muitos traços de um trabalho tradicional, mas seus modelos estão longe de serem comuns, e penso que isso conversa com a questão

levantada acima.

​Toledano documentou pessoas que passaram por um processo radical de reconstrução corporal, com no mínimo 30 cirurgias acumuladas. Questionado sobre seu projeto, ele responde: “Em 50 ou 100 anos, eu acho que a humanidade não vai parecer com o que se parece agora por conta da tecnologia … seremos capazes de redefinir o que significa parecer humano e eu acho que essas pessoas são a vanguarda desse tipo de evolução.”

​Seu interesse nesse trabalho é pensar como definimos a beleza, quando há a escolha de se reconstruir um corpo, de criarmos o corpo nós mesmos.

​“Agora que finalmente o ser humano tem os meios tecnológicos, que escolhas serão feitas?”

​Compensar as fragilidades tem levado ao corpo a tornar-se over, a mais, e paradoxalmente, vislumbramos seu desaparecimento, sua substituição. Há um desligamento do homem de suas imagens vindas do Outro, conseqüentemente sem as referências que os dominavam, mas que também os confortavam.

​Gostaria de trazer outro exemplo que me chamou muita atenção, logo após saber do tema das nossas jornadas. Trata-se de um fenômeno relativamente novo – as bonecas de borracha, feitas de látex, com características femininas exageradas. São homens que encomendam pela internet a empresas especializadas seu corpo de mulher. Elas tem se tornado uma forte tendência, mas na verdade já estão sendo fabricadas há algumas décadas. Eles então compram seu corpo de mulher, e o fazem uso dele, cada um a sua maneira.

​É um movimento que cresceu muito e adquiriu adeptos, que se reuniram recentemente numa convenção em Minessotta. Entrevistado, Robby, setenta anos, diz que passa seu tempo vestido da cabeça aos pés com uma roupa de boneca de borracha, que recebe o nome de Sherry. Começou a ter esse hábito clandestino de fantasiar ter um corpo de mulher aos 50 anos, após uma separação traumática. Vestia-se com roupas de mulher no começo, mas achava que faltava algo nessa experiência.
Vestido com seu corpo de mulher passa o tempo a se fotografar. Tomou coragem contou sobre esse “vicio” à sua filha, que desde então não fala mais com ele.

​“Minha motivação é um mistério para todos, inclusive eu.”

​É um dos melhores clientes de uma empresa familiar que soube aproveitar desse mercado, anunciando vender corpos de mulheres inteiros (full). Eles estimam ter vendido para 400.000 pessoas por todo o mundo.

​Encontrei no texto de Romulo, publicado no boletim dessa jornada, algo que me pareceu esclarecedor, quando ele traz a pergunta sobre qual motivo faz com que encontremos mais desenhadores de moda do sexo masculino, trazendo como resposta imediata da psicanálise algo que equivaleria a vestimenta feminina ao fetiche. Em alguns sites que tentam classificar esses sujeitos em subgrupos, de acordo com a razão principal pela qual buscam as bonecas, classificam o primeiro como escravas, e o segundo como fetiche.

​“Ou seja, esses homens, pelo amor que nutrem pelo corpo de mulher, encarnado na mãe, buscam sempre inovar formas de recobri-lo, tornando-o cada vez mais atraente, enigmático e sofisticado. Porém, inacessível”.

​Rômulo finaliza com uma outra hipótese, que me pareceu interessante pensar pois nesse caso é o corpo de mulher que vem revestir o do homem, como no caso de Robby – se olhar através das fotos como mulher, tentando através disso produzir um saber sobre esse corpo, corpo de gozo Outro.

Vou citá-lo:

​“Não creio que se trata propriamente de um fetiche, mas de recobrir para todos os seres submetidos à castração, o corpo que temos, mas não somos. Uma maneira criativa e encantadora de fazer do que temos, algo mais próximo do que o que queremos ser.”