Capitulo XIII- O paradoxo da garantia
Miller inicia esse capítulo anunciando que sua articulação desse semestre de seu seminário de orientação seria uma tentativa de demonstrar a transformação da noção de Escola em um conceito fundamental da psicanálise, pois a Escola responde à estrutura da experiência analítica e não a uma contingência histórica. Trata-se de uma tentativa de retirar a conceituação da Escola do capítulo histórico e a definir como um conceito analítico fundado na clínica do fim da análise. O que isso quer dizer?
Seu desenvolvimento parte da definição da palavra conceito, dizendo que essa seria uma palavra justa, pois implica uma captura, um termo usado para circunscrever uma classe de elementos fechados em seu interior (circulo de Euler) que marca uma distinção, uma repartição e uma segregação – aqueles que pertencem e os que não pertencem.
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No interior da Escola, há uma materialização, um anuário, uma lista, que padroniza seus nomes próprios. Usa o termo couché em francês (assinalar em uma lista e deitar-se) para falar de uma conexão singular entre a lista e o divã. Um pertencimento singular.
Retoma os primeiros tempos que Lacan necessitou para levar a cabo sua Escola: o Ato de fundação de 64 e a Proposição de 1967. O primeiro privilegia o conceito de Escola e o segundo se dirige ao psicanalista da Escola, ou seja, um primeiro tempo dirigido aos trabalhadores decididos e um segundo destinado a pensar as diferenciações internas da Escola.
No ato de fundação, para fazer parte da Escola não era preciso saber se fulano era psicanalista e sim saber se estava decidido a comprometer-se com um trabalho que concernia o campo aberto por Feud.
X E ÛT (x) – a seta nos dois sentidos significa é equivalente a. Ou seja, não se apoia em trabalhos, listas de diplomas e sim em ser um trabalhador decidido a trabalhar. O que abre as portas da Escola não é um título adquirido, mas a menção de algo que esse trabalhador se propõe a fazer e que promete a Escola, ou seja, um trabalho em potência. O que permite entrar na Escola, então, é uma promessa, e uma aposta a ser confirmada. Uma promessa de trabalho.
A Proposição, portanto, explicita o Ato neste ponto decisivo que se traduz na fórmula- O analista se autoriza de si mesmo, que escandalizou aqueles que pretendiam autorizar os analistas (queremos autorizar- queremos proibir), mas que para Lacan é um principio da Escola. Não se faz um slogan impunemente!
Aqui Miller retoma o termo invenção, dizendo que o campo de se autorizar de si mesmo é muito vasto na sociedade, onde quer que haja invenção. Onde quer que haja algo novo, alguém se autoriza de si mesmo. Exemplifica apontando a diferenciação entre o professor de filosofia e o filósofo, o professor de Belas Artes e o artista, o professor de literatura e o poeta. O que não vem por títulos nem pelo saber adquirido e sim pela invenção. Ou seja, onde quer que se invente, se faça algo novo, alguém se autoriza de si mesmo. Por consequência, temos um campo muito vasto. Em 78 Lacan diz – A cada analista lhe corresponde reinventar a psicanálise. Faz parte do conceito de Escola: autorizar-se e reinventar. Nesse sentido não há nenhuma garantia, e sim uma arriscar-se.
Não há motivos para considerar uma invenção lacaniana desmedida, a prática consiste em inscrever uma declaração sem garantir o que se inscreve, como as associações existentes na França. Se pode declarar a existência de algo e que isso se faça sem garantias, sem comprometer a responsabilidade de quem faz a declaração se essa respeitou uma formalidade anterior que não afeta em absoluto seus estatutos. (ministro de Interiores)
Seria possível imaginar uma escola que aceite essas declarações sem garantias e se detenha aí, no mero registro da declaração, sou analista? Isso impediria a Escola lhe dar uma garantia?
A resposta de Lacan em 67 – Isto não exclui que a Escola garanta que um psicanalista surja de sua formação. Para Miller está claro que o analista se autoriza de si mesmo e também que a Escola pode e, inclusive deve garantir que um analista provenha de sua formação. Se não, não se ajustaria ao conceito lacaniano de Escola. A Escola não garante que haja um analista senão que este analista que se autorizou a si mesmo foi formado pela Escola enquanto tal. Se distinguem então dois tipos de garantia- a dada e a demandada, que pode ser concedida ou não
O primeiro tipo de garantia se concede ao psicanalista que deu provas, o que significa que é um psicanalista de fato, e dar-lhe uma garantia nessas condições é faze-lo um psicanalista de direito, de modo que a Escola garante o conhecimento que tem de que esse membro deu provas de suas atitudes- o batiza AME. É um psicanalista de fato, funciona como um psicanalista, não podemos negar que funciona como um psicanalista.
Se tomarmos seriamente a fórmula – Um analista que deu provas de sua capacidade fica mais claro entender o paradoxo do outro tipo de garantia, que justamente é demandada por um analista que não deu provas, que se coloca com o que Lacan chama de Passe.
Lacan distingue uma dupla relação com a prática analítica, uma a posteriori e uma a priori. No passe há um elemento de antecipação, de aposta, que é ineliminavel e que não faz mais que repetir essa promessa que estava presente na entrada da Escola. No passe se reencontra esse elemento de antecipação, aposta e compromisso.
O essencial é a ordem temporal – sou analista, como conclusão de uma serie (10 anos por exemplo), ao analista do instante de ver. A esse instante de ver inicial Lacan tenta circunscrever que está articulado ao momento de concluir a própria analise. O sou analista circula entre o momento de concluir e o instante de ver o destino que se terá como analista. São as duas vertentes que constituem o passe. O passador que esta no momento de concluir e o passante que testemunha seu instante de ver.
A demanda de passe é uma demanda de garantia independente da série. As demandas de passe não se baseiam nas provas de qualidade pela prática como analista e sim no testemunho da própria análise enquanto analisante. O sujeito testemunha que se compromete, e trata-se de saber se a Escola quer se comprometer com ele.
Não é, de forma alguma, a mesma garantia: A dada e da demandada. A do passe é arriscada. Enquanto que com a nomeação AME se sanciona uma prática com relação ao AE não é do mesmo modo.
Demandar uma garantia da Escola que não seja uma garantia de sua funcionalidade, posto que essa não se demanda e sim se recebe por se ter dado provas, implica em demandar a garantia de que houve uma invenção singular que já estava presente no instante de ver e que se confirma no momento de concluir. Isso implica um risco, segundo Miller.
A identificação permite o sujeito fazer parte do grupo, das massas. O que é um sujeito que já não esta identificado? Um analista. Ser analista não é uma identificação? Toda a estrutura da Escola esta pensada para que um analista não seja uma identificação, quando já não há mais identificação, o que fazer com um sujeito assim? O identificar de imediato é a solução dada pela IPA.
Uma segunda solução, identificar-se com seu próprio vazio, consigo mesmo como S barrado, a histeria pós analítica.
E a via que indica Lacan quando convida o analista a orientar sua posição pelo que chama de objeto a, que não se trata de não identificado, mas de um elemento refratário a identificação.
Dessa terceira solução, distingue duas modalidades: a primeira, tentadora para qualquer analista, é da posição de a, identificar-se com o desejo, assumir o que na história se conhece como a posição cínica pura que considera tudo o que é da ordem do significante como uma sublimação vazia de sentido e lhe opõe o gozo do Um (Diogenes, o masturbador), não tem mais lei que o gozo do Um, chega até aqui e rechaça, assim mesmo, o laço amoroso. Essa posição cínica, aberta pela analise, é exatamente o que poderíamos chamar de novo mestre.
Miller diz que vê crescer delírios de mestres entre os analistas induzidos pela análise. Não se apegam a nenhuma regra do grupo, pois seria contrário ao que sua análise fez nascer neles.
A respeito desse produto da análise Lacan propõe a Escola, e com uma ironia maior, ser membro dela. Essa seria uma segunda solução dentro da terceira via que Lacan postula, sob o nome da Escola, sob a égide do trabalho, precisamente, fazer-se de escravo. No lugar de um mestre solitário e cínico propõe o trabalhador.
Aqui vemos articulado a Escola como conceito psicanalítico, vemos a Escola responder à estrutura da experiência analítica, à clínica do fim da análise. Porém, um paradoxo sempre se coloca quando se oferece uma identificação ao desentificado. Gostaria de propor uma discussão a partir desse paradoxo.