Eixo: Clínica

Resumo

Na clínica das psicoses somos frequentemente confrontados com situações limites que envolvem o ato. O crime, a delinquência, a automutilação são temas que interrogam o psicanalista e o convoca a se manifestar em outros campos de ação. A proposta do presente trabalho é abordar o conceito de passagem ao ato através de um caso cujo episódio de agressão teve grande repercussão nos meios de comunicação. É um relato de caso ainda em andamento, mas que pode contribuir para a elucidação da questão do ato criminoso na perspectiva psicanalítica.

 

Psicose e Ato

Todo[1] ato verdadeiro é delinquente, pois comporta uma transgressão, uma infração de um código, uma lei, um conjunto simbólico. Para que se possa dizer que houve um ato, é necessário que o sujeito seja mudado por essa transgressão. Foi a recorrência das passagens ao ato como razão para pedido de internações em instituições que instigou a elaboração do presente trabalho.

J., 23 anos, está internado em uma instituição, sendo essa sua primeira passagem por um serviço de saúde. Segundo seus familiares, jamais demonstrou qualquer comportamento suspeito, simplesmente o uso de drogas. Tinha decidido parar de usar e entrar para a igreja na semana anterior aos acontecimentos que se seguem.

Começou a perceber a mãe com atitudes diferentes. Parecia que ela estava com a “pomba gira”. Ficou muito perturbado e saiu para a rua, passando a noite toda lendo a Bíblia. Ao amanhecer, caminhou até a casa e ao chegar viu que a mãe estava muito pior. Sentiu muito medo da mãe. De noite, ela vem lhe trazer um copo de leite como de costume, ele ouve o pastor na rádio dizer: mate e coma. Ele pensa: ou ela ou eu.

Matou-a e comeu um pedaço de seu corpo com pão para que ela ressuscitasse pura. Para tal, queimou-a, pois não iria comê-la cru. Pôs fogo também em seu cachorro e nas galinhas, pois Deus queria que ele queimasse todas as coisas que ele amava e que estavam sendo usufruídas pelo demônio.

No dia seguinte, seu irmão percebeu que J. não estava bem e o levou para sua casa. J. vai até o banheiro, amputa seu pênis e sua mão. Era vontade de Deus que fizesse isso, e por seu sacrifício, aliviou os pecados de todos na terra.

Apresenta-se tranquilo e silencioso. Diz que não se arrepende de nada do que fez, apesar de ter pensado em suicídio. Agora pensa em refazer sua vida, conseguir uma prótese, trabalhar, casar e ter filhos. O corpo da mãe não foi encontrado. Escreve um bilhete, em uma oficina terapêutica: Não quero mais é ser viado.

A[2] passagem ao ato revela a estrutura do ato, pois ela implica um antes e um depois. Termina-se algo e se inicia uma outra coisa – um corte mudo, que podemos chamar de a morte do sujeito no ato, ou sua mutação. Indecifrável, pois não aceita o recurso à palavra. Definitiva, pois nada pode voltar a ser como era antes.

Temos vários casos na literatura psiquiátrica de crimes “imotivados”, onde vemos a psicose arrefecer de uma maneira considerável após a passagem ao ato, como as irmãs Pappins e Aimée. Muitas vezes o paciente é visto tempos depois e pode até mesmo receber o diagnóstico de transtorno de personalidade.

Do ponto de vista do que seria esse crime para a psicanálise, podemos partir do lugar em que o sujeito se coloca diante do objeto que é a mãe. A droga aparece fazendo um distanciamento. No momento em que sai a droga, a mãe aparece como uma figura sexualizada. Há uma aproximação e em seguida aparece a perseguição.

  1. ouve no rádio: mate e coma. Aquilo é dirigido a ele. Não é um ato canibalesco simplesmente, mas sim um ritual. Comendo a mãe, a integrando, ela ressuscitará.

O conceito de passagem ao ato para Lacan é ordenado pela pulsão de morte. Miller diz que na passagem ao ato se abandona os equívocos do pensamento e da linguagem pelo ato, sem cifração do risco. Sem a preocupação com o futuro. O sujeito se evade da cena, saí do mundo, e se separa do Outro. O que ela visa é o gozo.

Temos um aviso de onde poderá seguir essa psicose. J. tem uma percepção de si como feminino, que não aparece para nós, mas que está intimamente colocado. Ele integra a mãe para que ela ressuscite nele, não como mãe, mas ele como mulher. Corta o pênis depois disso.

  1. coloca seu delírio em ato, aquilo que Schereber elabora em anos. É o lugar do feminino, da mulher castrada, mas não de qualquer mulher e sim o da redentora.

Podemos ver como um sujeito que se apresenta aos dispositivos de saúde mental antes de uma passagem ao ato pode seguir seu tratamento e ter a possibilidade de elaborar um delírio, como Schereber o fez. Ele conseguiu, em um determinado momento, escrever seu livro e voltar a ocupar o lugar que ocupava. Houve uma barreira à passagem ao ato.

Já J. não teve uma elaboração do delírio, não pôde fazer barreira a passagem ao ato. Isso aparece então após a retirada da droga, seguido de muita angústia. Ou ele matava a mãe e ainda salvaria o mundo, ou ele sucumbiria, na “boca do crocodilo[3]”.

É importante que os cuidadores não se percam no horror e no fascínio que esse caso provoca, pois, insistir para que ele conte a melhor versão do ocorrido, para a psicanálise não tem muito valor. Porém, a questão da motivação, que é esse empuxo a mulher, essa função de redentor, de ter uma obra divina a realizar, isso nos interessa.

A mídia sim, se serve desses fatos, pois as tragédias causam essa mistura de horror e fascínio na sociedade.

A psicose de J. surge como um ato, motivado, quase como que em legítima defesa, pois para ele é real. A psicanálise tentará precisar para cada caso a incidência do crime e a resposta, a implicação do sujeito.

Veridiana Fatima Marucio, Clin-a

 

[1] Miller J.-A. Jacques Lacan: remarques sur son concept de passage à l’acte. Mental. Bruxelles: Nouvelle École Lacanienne, v. 12, n. 17, 2006.

[2] Miller J.-A. Jacques Lacan: remarques sur son concept de passage à l’acte. Mental. Bruxelles: Nouvelle École Lacanienne, v. 12, n. 17, 2006.

[3] Lacan, J. O Seminário – Livro 4 – A Relação de Objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.