Esse será o tema de trabalho desta diretoria. Pretendemos nos debruçar sobre aquilo que, desde sempre, é o cerne da clínica e da política da psicanálise: o sintoma.

Sabemos que a noção de sintoma tem percorrido um longo caminho, não apenas na psicanálise, mas, se esse conceito trouxe algo de original ao tratamento psicanalítico, é que é através dele que percebemos a relação problemática que o sujeito estabelece consigo mesmo.

O sintoma é o que nos leva a procurar um analista, sendo inicialmente tomado como algo estrangeiro a nós mesmos e que gostaríamos de apagar de nossas vidas. No entanto, para um psicanalista, ele é a expressão de nossa verdade mais íntima e a manifestação de nossa criação mais singular.

Seguindo a linha de trabalho da diretoria anterior, mantemos nosso interesse na clínica contemporânea e acreditamos que essa proposta está em continuidade com as questões levantadas nos últimos dois anos sobre o estatuto do objeto a e o Fantasma.

A via que escolhemos será a de retornar ao ensino de Lacan, sobretudo ao seu último ensino, mas não sem antes percorrermos o que chamamos de momento da primazia do simbólico, guiados pela noção de letra, a fim de renovar o sentido do sintoma, introduzido por Lacan ao modificar a ortografia da palavra ‘sinthoma’.

Partimos das seguintes questões: Como podemos recorrer à obra de Lacan na atualidade para interpretar a clínica contemporânea e a emergência dos novos sintomas que surgem neste contexto? Quais laços podemos construir entre política e psicanálise a partir de Freud, revisitado por Lacan, para pensar o mal-estar na nossa civilização? Como isso ajuda na nossa prática clínica?

Gostaríamos que essas questões orientassem também as nossas atividades de quarta-feira, ou seja, que possamos ter apresentações teóricas articuladas à clínica e à atualidade.

Para apresentar este projeto de trabalho, faremos um breve percurso com o objetivo de situar essas questões e fundamentar o ponto em que desejamos chegar. Optamos por um percurso cronológico, estruturado em três tempos distintos, embora saibamos que essa seja apenas uma forma de apresentação, e não uma cronologia que reflita uma evolução.

(É como se fosse um tudo ao mesmo tempo agora!)

Qual a diferença entre interpretar ou decifrar e ler um sintoma?

Tempo 1- Sintoma formação do inconsciente, escrito hieróglifo, letra como elemento simbólico, gozo do sentido.

Lacan comparou Freud a Champollion, pai da egiptologia, responsável pela decifração dos hieróglifos. É verdade que Freud faz referência aos hieróglifos, particularmente em seu texto “A Interpretação dos Sonhos”, onde indica a importância da escrita e do deciframento para a psicanálise.

A interpretação-decifração sempre esteve no centro da psicanálise, desde que Freud começou a dar importância a elementos que pareciam insignificantes, como os sonhos, os lapsos e os atos falhos, que ele chamou de formações do inconsciente.

E o que são as formações do inconsciente? O que elas dizem?

O problema é que elas não dizem obrigatoriamente o que parecem dizer. Sob o texto manifesto, há um conteúdo latente que podemos alcançar por meio de uma operação inversa àquela que o produziu – decifrar algo cifrado.

Há um querer dizer que o sujeito desconhece, e que aprendemos a interpretar como um rebus, uma escrita. O elemento do rebus é um signo significante, mas, para decifrar essas formações, cada sujeito, além da língua que fala, possui uma língua singular, e, portanto, sua tradução também é singular.

Ao contrário das outras formações do inconsciente, como o sonho, que é fugaz, o sintoma se caracteriza por sua permanência; ele se repete e faz sofrer. Nesse tempo 1, o sintoma está ligado ao sentido e ao desejo de saber, permanecemos na lógica significante. (A materialidade do significante).

Tempo 2 – Sintoma Repetição, escrita como resto, gozo do objeto, letra tanto elemento simbólico como receptáculo de gozo

Quando Freud interpreta um sonho, ele busca um sentido e um desejo que o sonhador desconhece, mas ele também assinala que, em um certo ponto do sonho, que ele chama de “umbigo”, há sempre um resto incompreensível, fora de sentido, que persiste e resiste à interpretação.

Nesse ponto, a interpretação não pode ser somente uma leitura deciframento, mas sim uma leitura que envia para além do sentido. Por mais paradoxal que possa parecer, essa leitura visa reduzir o sentido.

Se, para Freud, a pulsão sempre se satisfaz, para Lacan, ela determina o modo e as coordenadas do gozo, estabelecendo consequências diretas sobre o estatuto do sintoma. O essencial do sintoma reside na repetição. Não está no simbólico – como uma mensagem a ser decifrada, uma mensagem dirigida ao Outro, ou como palavra – nem no imaginário, mas no real, justamente porque ele tenta inscrever aquilo que não existe e retorna sempre ao mesmo lugar. (enquadre fantasmático)

Em O Outro que Não Existe, Miller e Laurent afirmam que o sintoma possui uma parte variável e uma parte fixa. A parte fixa é o apego pulsional do sintoma, enquanto a parte variável é sua inscrição no campo do Outro.

Ler essa fixação de gozo só é possível entrelinhas; ela não é capturada pelo sentido. O que se escreve sobre o gozo é o real no ponto em que ele não mente. O paradoxo reside no fato de ser um real que qualifica algo que não existe. O sintoma seria, então, uma mentira sobre o real? Ou, até que ponto o sintoma é sincero? Retomaremos essa questão mais adiante.

Tempo 3 – Sintoma Iteração, escrita selvagem do gozo, letra nome de gozo, (gozo excesso)

Se no tempo 2 se procurava um elemento fixo e constante do sintoma na abordagem do objeto a e a significação a ele anexada no enquadre da fantasia, a ênfase aqui é dada ao S1, significante primeiro que designa uma experiência de gozo fundadora do acontecimento de corpo, um corpo que se goza. O sintoma é um acontecimento de corpo.

O último ensino de Lacan privilegia o significante separado da significação e destaca o caráter contingente do significante e seu efeito de gozo no corpo, experiência fundante do qual o sujeito nada sabe. Há o Um, independente da fala e da linguagem e seu efeito no corpo é opaco ao sentido.

A insistência e reiteração do Um não se confundem com a repetição como automaton, ou seja, o objeto perdido ativando permanentemente a simbolização da ausência pela via da permutação significante. A repetição do Um é correlata à repetição como tiché, o real inassimilável do trauma.

Miller designa a reiteração do Um como “escrita selvagem do gozo”, escrita do Um sozinho, fora de qualquer sistema significante, ao passo que o S2, saber do qual ele seria correlato é apenas suposto.

Temos sons e letras, fala e escrita. Miller afirma que é nesse espaço, entre o falar e o ler, que a psicanálise opera. Ele propõe separar, de um lado, o sentido e, de outro, a escrita; o ser e a existência; o sentido e o fora do sentido.

Essa separação implica uma não-relação entre os dois, um corte radical. O sentido sempre remete a uma marca, enquanto a existência (o Um da existência) se liga a um efeito de escrita e não de significação. Se existe uma lógica entre eles, ela é contingente.

O gozo é rebelde às mudanças, assim como o sintoma. Por isso, é preciso tempo e um consentimento para essa leitura. Esse gozo que itera está sempre lá, movimentando, a diferença do gozo capturado pela fantasia que está sempre no mesmo lugar. Continuidade e descontinuidade.

O Outro Não Existe

Como operar com o que se apresenta como um contínuo? Como encontrar um interstício nesse contínuo de excesso, de forma a abrir um espaço para a palavra do ser falante? E como essa palavra pode romper com esse contínuo de excesso?

Vivemos hoje o colapso da imago paterna, antecipado por Lacan em Complexos Familiares, de 1938, que já prefigurava a realidade de nossa época, a qual alguns autores queer chamam de pós-patriarcal.

No Avesso da Psicanálise, Lacan aborda essa dimensão do gozo além da função do pai. Em Televisão, ele sugere que a desintegração lenta e progressiva da ordem simbólica levaria à emergência de fantasmas inéditos, uma vez que o “A” já não pode mais situar o gozo.

A queda do Outro resulta na ascensão de fantasmas inéditos, mas também de sintomas inéditos, pois o fantasma é o ponto de origem de todos os sintomas.

Esses fantasmas inéditos se manifestam nas transformações fluidas do corpo sexuado, quando o Outro já não fornece um indicador claro do que é ser homem ou ser mulher. (Como exemplo: “homem pode dar à luz”.)

Outro reflexo dessa previsão lacaniana é a ascensão das adições, onde um mal-estar não consegue se organizar em sintoma e expõe um gozo desarticulado da ordem simbólica.

Nesse contexto, também observamos o aumento dos diagnósticos de psicopatologias, particularmente o da hiperatividade, um sintoma cada vez mais generalizado entre crianças.

Uma das demandas contemporâneas se formula frequentemente como uma aspiração para suprimir o real que perturba, sem que, portanto, o enigma do sintoma engendre a hipótese de uma causalidade que envolva o sujeito. A ciência e as práticas normativas que oferecem soluções padronizadas encontram, nesse contexto, sua adesão.

Na clínica, percebemos ainda o aumento das fobias difusas nos adolescentes, especialmente em relação ao encontro com o outro sexo, ou mesmo a recusa a esse encontro, onde a função simbólica do falo é adiada — não como procrastinação, mas como uma estratégia para contornar o significante fálico.

Esses movimentos, que se situam no vazio deixado pela função paterna e pela função fálica, são claros indicadores de um desarranjo quanto ao gozo em nossa civilização. Esses efeitos decorrem da inconsistência do “A” nos três tempos do sintoma, um processo ainda muito vivo. Não podemos afirmar que o sentido tenha se dissipado, nem que a repetição tenha desaparecido; ao contrário, ambos se apresentam de outra forma, mais rígidos, não mais como fugidios, mas como rigidez, consequência de um imaginário endurecido. Como, então, promover a abertura do sentido? Como permitir a fuga do sentido?

Como tratar esse excesso de gozo? Amor x crença

Para trabalhar com o sintoma, é necessário, antes de tudo, acreditar nele. F.Leguil  propõe tensionar o sintoma e o fantasma, pois, enquanto o primeiro consiste em um “mentir verdadeiro”, o segundo é um “mentir falso”. O fantasma é o que impede o sujeito de dar crédito ao sintoma, pois, como bem vimos na discussão em nossa seção no ano passado, o fantasma organiza toda a vida do sujeito, cobrindo a verdade. Dizemos que ele enquadra a realidade, uma mentira que obtura a questão da verdade, enquanto o sintoma é uma mentira que abre a uma verdade – uma mentira para se defender e para gozar.

O amor ao sintoma está ligado ao amor ao saber que é o inconsciente, e a visada de uma cura consiste em fazer com que essa crença não esteja mais ligada a esse amor. O percurso consiste, então, em levar o sujeito a preferir o “mentir verdadeiro” de seu sintoma, essa necessidade que o limita, ao “mentir falso” do fantasma, essa instituição que cobre e fecha a relação com a verdade. Que tipo de crença estamos nos referindo nesse ponto e que tipo de amor? Seria aqui o que chamamos de amor mais digno?

O sintoma está organizado como uma necessidade de recalcar o fantasma, colocando assim o desejo a serviço de uma defesa que isola o real. O fantasma fornece ao sujeito a ilusão de que ele pode se virar com o objeto que o significante é incapaz de nomear.

Ele se apresenta como um saber fazer com o real do gozo, um saber fazer com o objeto que convém ao gozo do A (Perverso).

Através da construção e da travessia do fantasma, o trabalho analítico consiste em cortar a cumplicidade gozoza do sintoma com seu axioma fantasmático.

Esgotado o sentido, poderia o sujeito crer enfim que seu sintoma é a marca de sua singularidade absoluta, seu sinthoma, que poderá se reduzir a uma letra, a um nome de gozo.

O sinthoma, como aquilo que confere ao sujeito seu estilo, será, a partir de então, o que o representa no real. Saber no real?

Ocupar-se do gozo, aparelhá-lo com os semblantes e com a lei é o trabalho de uma política, a nossa política: aquela que toma o sintoma como um instrumento, ligado à utilização do efeito da linguagem que é o desejo.

Pretendemos dedicar os próximos dois anos de trabalho ao estudo desse conceito e demonstrar, em nossas atividades, como a leitura do sintoma, nesses três tempos distintos, opera em nossa prática. Queremos mostrar de forma borromeana, por meio de articulações teóricas e passagens clínicas — seja de nossa própria prática ou de casos já estabelecidos — como sustentar e dar continuidade às questões levantadas por este argumento.