Mais ce qu’un sujet a de plus réel, c’est justement son symptôme[1]

1. Como abordar a dimensão política do tratamento em psicanálise?

 

Unicamente pela via do sintoma. Para Lacan[2], o sintoma institui a ordem em que se revela nossa política. Essa afirmação implica que tudo que se articule por essa ordem seja passível de interpretação.

 

Ao propor essa hipótese, Lacan traça um plano para avaliar o quanto a psicanálise pode se apoiar nisso que o sujeito tem de mais concreto, de mais real, para se fazer presente no mundo. Portanto, se a dimensão política do tratamento é a do sintoma, a interpretação é a ação política do analista.

 

Entretanto, o sintoma também tem uma política, qual seja: a de sinalizar que algo está errado no gozo do sujeito, função fundamental que permitiu a Freud inventar a psicanálise, baseando sua exploração do inconsciente a partir do sintoma abordado pelos modos da fala, como satisfação substitutiva, produto da “renúncia pulsional” e, portanto, formas de tratamento das tendências destrutivas, as quais remetem ao que ele designa como pulsão de morte.

 

Se ele pôde se perguntar se o inconsciente não era imaginário e considerar que as pulsões eram ficções, ele jamais questionou o caráter certo do sintoma. Isso o colocou no registro do real, do que insiste e deixa restos.

 

O sintoma se caracteriza por sua permanência. Ele se repete e faz sofrer, diferentemente das outras manifestações do inconsciente. Segundo Miller[3], “Os sonhos se apagam. São seres que não consistem, dos quais frequentemente só temos fragmentos na análise. O lapso, o ato falho, o chiste, são seres instantâneos que fulguram, aos quais damos na psicanálise, um sentido de verdade, mas que se eclipsam imediatamente”.

 

Quando um sonho ou um ato falho se repete, podemos tomá-lo como um sintoma, como uma satisfação substitutiva àquela que concerne à relação sexual inexistente para os seres falantes. Toda construção sintomática se baseia em um momento fundador do sujeito, no qual algo fica de fora, expulso de qualquer possibilidade de simbolização.

 

O sentido de verdade do sintoma também se interpreta, se decifra, mas há uma dimensão real do sintoma fora do sentido ao qual damos um estatuto muito diferente, e como consequência, o funcionamento da interpretação muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido.

 

Tomemos então a interpretação, a ação política do psicanalista, como o saber ler. O que se lê é o sintoma, aí onde o encontramos. Uma leitura do sintoma leva a cercar, circunscrever o que não funciona, mas ao mesmo tempo, o ilegível, o fora do sentido.  Somente a partir disto que não funciona e que se reitera é possível que isso que é da ordem do ilegível seja passível de interpretação.

 

O sintoma e o social

 

Ao tentar trazer para essa elaboração algo que possa elucidar a dimensão política do tratamento, a política do sintoma, pensamos em fazer uma articulação com o social.

 

Para tanto, nos serviremos de uma reportagem do colunista da UOL Ricardo Kotscho,[4] que escreveu no dia 24 de fevereiro de 2023 após os alagamentos ocorridos no litoral paulista durante o carnaval um artigo sobre essa tragédia e o que ela revela.

 

O colunista relembra que em 2010, a elite nobre de Higienópolis se mobilizou para impedir a construção da estação Angélica do metrô, temendo a invasão de moradores da periferia, chamados eufemisticamente de “gente indiferenciada”. A companhia de metrô logo refez seus projetos e construiu a estação em outro lugar, longe da massa cheirosa, como fora apelidada nos jornais a parte vencedora.

 

Destacando a repetição de fatos semelhantes que se verifica ao longo da história, ele nos apresenta a problemática dos migrantes nordestinos, que nos anos 70, atraídos pela oportunidade de trabalho, começaram a construir seus barracos nas encostas da serra do mar, sendo que do outro lado da Rio-Santos estavam as mansões luxuosas. De um lado, a “massa cheirosa”, e de outro a “gente indiferenciada”, que passou a trabalhar como empregados domésticos nos condomínios de luxo.

 

Na semana dos alagamentos ocorridos no litoral norte paulista, o prefeito de São Sebastiao revelou, falando sobre as consequências da tragédia vivida pela cidade, que havia um plano para construção de casa mais populares para abrigar 300 famílias que moravam em área de risco. A classe alta de São Sebastiao naquela ocasião havia solicitado uma reunião com o prefeito para barrar as construções destas habitações. Temiam que poderia haver uma desvalorização imobiliária, além do convívio forçado com a “gente indiferenciada” nas praias e nos estabelecimentos.

 

O jornalista conclui a matéria dizendo que nessas disputas por espaços, os vencedores continuam sendo sempre os mesmos.

 

A história demonstra que a rejeição sempre incide naquilo que adjetiva a diferença, como nesse exemplo: cheirosa e a indiferenciada. Aquilo que não pôde ser incluído na cena, é rejeitado, pois não pôde ser simbolizado por apresentar um gozo estranho ao meu. Propomos pensar que isso que aparece como insuportável é o que Freud aponta quando identifica a leitura do retorno do recalcado como aquele que se faz de textos censurados dos quais partes foram retiradas, e que quando surgem, deixam transparecer a perturbação que nos gera a manifestação do estranho que nos habita. Rejeitar a presença perturbadora daquilo que não se pode dominar e controlar nunca será totalmente efetivo, e se repete, pois os restos dessa operação são inelimináveis: o mal-estar em si mesmo é o irredutível que atravessa toda época e lugar.

 

Percebemos como uma reflexão eminentemente clínica culmina numa reflexão social de grande valor. Propomos pensar nos alagamentos, com as cenas de objetos e corpos boiando, ou na chegada do metrô, ou mesmo os arrastões e os rolesinhos, como aquilo que irrompe na fala durante a análise e que não sabemos muito bem o que fazer com ela, nem mesmo a reconhecemos como nossa.

 

Para pensarmos esse paralelo, tomo o exemplo que nos apresenta Marcus André Vieira[5] em canções que ensinam a psicanálise. Uma das canções que Marcus trabalha é Girl from Rio, da Anitta, que ele intitula: topografia e ritmo do inconsciente.

 

O autor aborda a relação dos espaços da cidade através dessa canção, propondo um paralelo entre a cidade e a clínica psicanalítica. Na base da experiência analítica, tínhamos essa ideia de espaços fixos onde poderíamos abrir os porões e encontrar algo que estaria lá. Segundo Marcus, essa ideia já fora abandonada por Freud. Para Freud, a relação entre consciente e inconsciente não é estática, e sim dinâmica.

 

“A canção e o clip são muito didáticos. Tudo acontece em tons pasteis e em um ritmo de bossa nova, um pouco ‘fake’, quando de repente abre-se a cortina e desce de um ônibus todo tipo de gente! Percebemos como estamos o tempo todo em um jogo de forças, o ritmo musical muda, numa prolongação menos cadenciada, e o que importa aqui é o jogo de espaços, basta que as coisas se confundam um pouco”.

 

Através dessa ideia de confusão entre as pessoas que descem do ônibus e aquilo que já fazia parte da cena, Marcus propõe pensarmos que na clínica psicanalítica as coisas também se passam da mesma forma, que nosso material inconsciente habita na periferia e não está guardado em nenhum porão, o que já estaria embutido na proposta da associação livre.

 

Haveria então um material espalhado, como uma periferia ilimitada, e não somente dois lugares. A ideia  que nos apresenta Marcus André é a de teríamos um centro, mais ou menos organizado, e toda uma pluralidade de múltiplas experiências sensoriais e de vida, que estão gravadas, mas que não foram compatíveis com o unitário da consciência, assim como o ônibus, que ao abrir as portas produz esse efeito de confusão, como essa irrupção de elementos soltos, com cores e cheiros, traços, mas que não se conectam a nada, porém produzem todo um efeito de surpresa.

 

É com esse material que trabalha o analista e sua ação, a interpretação, tem essa dimensão politica de não estar orientada pelo reforço do ego, ou das identidades, mesmo sabendo que para muitos sujeitos uma identidade já é muito. A ação política do psicanalista é a de possibilitar a leitura desse material.

 

Quando esse material inconsciente aparece, a intepretação do ilegível pode proporcionar uma reconfiguração do eu, segundo o autor, ou seja, pode-se ler essa outra cena que não se estabiliza, esse agenciamento de lembranças que se reinventam e que podem mudar a nossas vidas.

Me parece importante precisar que na clínica, através dos relatos de passe, percebemos que as ficções e fantasias, ou a verdade mentirosa é a condição necessária para produzir a passagem da dimensão transferencial a real.  Caminhamos pela via do deciframento e da verdade, porém é na contingencia que o material inconsciente, ao se apresentar na análise, promove a passagem do campo do Outro do significante, ao corpo como Outro.

Ao dizer que o sintoma é o que o sujeito tem de mais real, Lacan nos propõe que o sintoma é a singularidade com a qual cada um se arranja com a inexistência da relação sexual, de forma contingencial. Para além de toda articulação simbólica, de toda ficção a ser construída no decorrer de uma análise, permanece um resto incurável, a partir do qual o sujeito poderá fazer algo inédito, um modo de resistência ao universal, sempre na contingência. A ação politica do psicanalista pode ilustrar esses modos de resistência ao universal, tanto na clínica como no coletivo e tornam-se a prova viva do que há de mais singular em cada um.

Para finalizar, trago uma reflexão interessante de Mano Brown, um dos integrantes dos Racionais Mc.[6] Mano Brown, Edi Rock, ice Blue e KL Jay criaram uma obra tão forte, com letras que aliam consciência de classe e consciência racial, explorando o dialeto das periferias paulistanas. Essa obra se tornou um modelo, como um farol de como se dizer as coisas: a Bíblia do Rap nacional. Porém, o próprio Brown aponta que esse fenômeno se tornou uma armadilha, pois criou um jeito de fazer as coisas que foi repetido a exaustão. Algo que era muito novo acabou virando um modelo. Pareceu-nos uma orientação preciosa a respeito do risco de tomarmos um acontecimento contingencial que promove todo um reordenamento coletivo, como o acontecimento Racionais, em algo da ordem da necessidade e perder sua força de resistência.

 

 

[1] Lacan J. Conferências e entrevistas nas unversidades norte americanas, Scilicet, n° 6/7, 1975, p. 41. Mas o que o sujeito tem de mais real, é justamente seu sintoma. Tradução livre.

[2] LACAN, J. Lituraterre. Outros Escritos. Paris, Seuil, 2001, p.18

[3] Miller, J.A. In https://ebp.org.br/sp/ler-um-sintoma/ acessado em 15/03/2023.

[4] Breda, L. In https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2023/02/24/maresias-e-a-versao-litoranea-da-massa-cheirosa-x-gente-diferenciada.htm. Acessado em 26/03/2023

 

[5] Vieira, M.A.In https://youtu.be/7wyocXjYeo8. Acessado em 20/03/2023

 

[6] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/entenda-como-os-racionais-fizeram-de-sobrevivendo-no-inferno-um-marco-cultural.shtml