1 – Introdução

Em um antigo texto de 1946[1] Lacan escreve a seguinte frase: “Não se torna louco quem quer”; ele a deixa gravada na parede do Hospital de Paris onde realizava suas primeiras práticas, extraindo dela a ironia que descobria na esquizofrenia.

Em contraposição a essa afirmação, vemos Lacan concluir em uma carta A Vincennes, de 1978[2]: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante!” – O que percebemos com essa afirmação é a ironia do próprio Lacan.

É um momento de mudança, no qual, como nos lembra Graciela Brodsky[3], não se trata mais de Lacan em relação a Freud e sim de Lacan em relação a mesmo.

Podemos pensar em um trajeto de leitura entre essas duas afirmações em que se diferencie, já no final do século recentemente passado, a clínica descontinuista. Da primeira parte do ensino de Lacan, feita de sim ou não, psicose ou neurose etc., e a última clínica, cujo paradigma está centrado nas psicoses ordinárias, continuísta, em que as categorias são mais fluídas e as soluções são quase tão variadas quantos os sujeitos.

O fio condutor para essa apresentação sobre o Pai e a loucura será a esquizofrenia, como o paradigma de soluções variadas, mais ao modo da última clínica, enquanto que a paranoia seria o modelo da primeira.

2 – A loucura do primeiro ao último Lacan

Gostaria de recordar o contexto da primeira afirmação de Lacan e tentar traçar um elo que possa esclarecer esse caminho. Podemos abordar a relação entre a função paterna e a loucura como uma conexão causal, como também podemos abordar a questão a partir da loucura do Pai, ou da função que não mais funciona.

Em 1946, como sabemos, o que tínhamos bem estabelecido era a teoria organicista da loucura, e Lacan, ao contrario, vem afirmar que existe uma causalidade psíquica.

Além disso, aponta para algo especialmente importante, que é a discordância primordial entre o Eu e o ser. A loucura encontra aí sua estrutura fundamental e mais geral: na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito perturbada.

A teoria lacaniana dos anos 50 vai então se ordenar a partir de uma teoria da instância imaginária, que se institui a partir dessa loucura fundamental, constituindo um eu de modo reflexivo, ou seja paranoico.

“O primeiro efeito da imago que aparece no ser humano é um efeito de alienação do sujeito, no outro se identifica o sujeito. “

A seguir, no seminário 3 e no texto De uma questão preliminar..., em 1955-56, Lacan produz um deslocamento do campo imaginário da identificação para dar peso ao simbólico. A fórmula “não se torna louco quem quer” vem ocupar um lugar na clínica das classificações relacionadas à estrutura. A psicose não resulta de uma decisão. Como estrutura clinica, e não como um inventário de meros sintomas e comportamentos observáveis, estabelecemos que a psicose está delimitada a partir do conceito de forclusão do Nome-do- Pai.

Uma vez estabelecida essa correlação, abrem-se já nos anos 50 os modos de compensação dessa falta. A presença de fenômenos elementares, transtornos de linguagem, a predominância do imaginário e as identificações massivas são manifestações clínicas da Verwerfung.

3 – A foraclusão generalizada (na verdade, o sinthoma generalizado)

Já no início dos anos 70, temos uma outra perspectiva para a psicose, com uma nova definição de sua constituição, livre do formalismo estruturalista, e apoiada na topologia dos nós. Em seu seminário RSI, 1974 1975 a hipótese principal de Lacané a de que os três registros podem se enodar de maneira borromeana, isto é, podem ter em si mesmos um modo de enodamento borromeano. Lacan toma, então, Joyce como paradigma dizendo que na psicose, o nó não se enoda de modo borromeano e é preciso um remendo, algo que venha sanar essa falha, ou seja, maneiras compensatórias.

Já Em seu seminário O sinthoma, seguido de RSI, sua tese maior – da foraclusão generalizada – , destacada por Jacques Alain Miller , qual seja: inclusive na neurose, todos os registros estão soltos, sendo necessário um enodamento por um quarto elemento. Em todos os casos esse enodamento se chama sinthoma, grafado com h.

Como consequência desse trabalho de Lacan sobre Joyce temos uma transformação do conceito de inconsciente e de final de análise.

Desse momento do ensino de Lacan orientado pelo real é extraída a tese da loucura generalizada, que retoma o tema de uma perturbação na junção entre o eu e o ser, fundamento geral da loucura como uma constituição do eu como sempre um pouco delirante. Todos os nossos discursos não passam de defesas contra o Real, colocada por Miller em Clínica Irônica, o que promove consequências importantes para a clínica

A paranoia era a psicose de referência no primeiro tempo do ensino de Lacan. Na segunda orientação, o que melhor nos permite entender essa defesa contra o Real é a esquizofrenia, para quem todo o Simbólico é Real. Isso significa que os sujeitos esquizofrênicos não utilizam os semblantes do discurso, e que existe, portanto, uma conexão direta entre a linguagem e o corpo.

O declínio da função paterna permite ver que a psicose é muito mais frequente do que se pensava, que o Nome-do-Pai é bastante ineficaz na maioria dos casos, e que os sujeitos inventam soluções que não são necessariamente o Nome-doPai para domesticar o gozo.

Como nos lembra Graciela Brodsky, essas soluções podem ser bastante estáveis, se arranjando muito bem com sintomas ocasionais, o que rompe com a ideia descontinuista da clínica estruturalista, em favor de uma clínica da continuidade, onde não é mais tão fácil colocar alguém de um lado ou de outro.

4 – A esquizofrenia e a foraclusão generalizada

Segundo Miller, se o Outro existe, podemos resolver pelo sim ou pelo não, mas, quando o Outro não existe, não se está simplesmente no sim ou no não, se está, portanto, no mais ou menos, ou seja, trata-se de uma clínica não estruturalista da gradação.

Em Arcachon ele responde àpergunta que lhe foi feita a propósito da continuidade entre a neurose e a psicose, à qual ele responde que não, e que a questão seria mais bem de uma gradação no interior do grande capítulo das psicoses. É uma perspectiva pragmática da psicose ordinária, e as consequências clínicas para a prática cotidiana se deduzem daí: A psicose é um conceito amplo que não esgota em absoluto as formas clínicas das psicoses psiquiátricas. Temos psicóticos sem fenômenos elementares, sem delírio, sem errância, etc… normais até demais; supernormalidade, muito adaptados.

O último ensino passa assim à busca de resolver problemas que não apareciam como problemas anteriormente. Passamos da proeminência do conceito de função paterna, responsável pelo “sim” ou “não” psicose, para o de sinthoma particular, como regulação singular de gozo. Não é mais o Nome-do -Pai que regula o gozo, e sim o sinthoma. O que temos é a clínica do não- todo, porque a solução de um não vale para outro.

O Outro do paranoico é o Outro que existe, até demais, e na neurose o Outro não existe. Por isso o neurótico quer fazer existir, o paranóico diminuir a consistência, e o esquizofrênico por sua vez se distancia, não supõe saber noOutro, o que é um problema para a transferência. A transferência de gozo em direção à dimensão dos semblantes não ocorre e a realidade e a vida se apresentam desprovidas de qualquer ilusão, mas também sem objetivos e interesses. Os discursos são vividos como ocos, sem fundamentos.

O Outro do esquizofrênico é a própria linguagem e o que ele vem revelar é a falta de fundamento e de consistência dessa dimensão. É como se essa dimensão não fosse operante ou como se sua inexistência fosse desnudada. Para ele o Outro é uma dimensão vazia de valor. A esquizofrenia evidencia aquilo que a neurose desconhece, segundo Zenoni

A ironia, mais ou menos feroz, de sua relação com o outro, ao social e a vida em geral é a denuncia de sua falsidade e de sua vacuidade. Ele experimenta a estrutura da inexistência do que constitui a realidade, feita de artifícios, de usos, de convenções.

Se o corpo não recebe de um discurso um funcionamento unificado e regido pelo princípio do prazer, na esquizofrenia ele aparece ao mesmo tempo como destacado do sujeito, não habitado e como submetido à uma significantizacão dispersa dos órgãos, fora de uma unidade corporal.

No registro do semblante, do imaginário ou das identificações, o corpo aparece como exterior ao sujeito ou como algo autônomo e sem vida, enquanto que no registro do real ele é idêntico à carne, não separado se seu ser de gozo. A dificuldade é a de se separar das diversas formas de dejeto que encarnam esse ser e a necessidade ao mesmo tempo de se separar ou de extrair por meios reais o gozo, que vão até à automutilação e testemunham essa imanência do gozo do registro do Real e de sua forclusao. Homem dos lobos – enema

5 – Uma clínica pragmática

Não é o caso hoje de entrar no detalhe da fenomenologia, mas tecer uma breve consideração que pode nos orientar à partir da clinica da esquizofrenia. Segundi Zenoni, pensar a esquizofrenia hoje comporta primeiramente restitui-la no campo desses diversos avatares da libido que são as doenças da condição de ser humano, de onde a neurose e a paranoia foram as primeiras formas exploradas.

Freud considerava os delírios dos sujeitos psicóticos como tentativas de cura. Como a fantasia para a neurose, os delírios permitem velar uma parte do real. Para o esquizofrênico, existe uma dificuldade suplementar, pois não há fantasia e também não há a constituição de um delírio, e é por isso, nos lembra Miller em seu curso A clínica lacaniana, de 1982: o esquizofrênico tenta se conectar a um outro corpo, um corpo simbólico de substituição, como um tratamento possível do Real.

Assim, o tratamento se orienta em encontrar as conexões do simbólico e do corpo, alternativas àquelas que se conectam diretamente com os órgãos, que incluem uma mediação imaginária, obter outras localizações da libido que possam fazer funcionar um ponto de basta, de limite que não sejam as passagens ao ato, favorecer um deslocamento da separação em direção à uma pratica que sejam mais da ordem do semblante.

Entretanto, segundo Brousse, em todo o último período do ensino de Lacan, enfatiza-se o papel do sintoma também para a neurose, na medida em que há um enfraquecimento do poder estruturante do fantasma, portanto uma dissociação entre o gozo do corpo e o amor ao Outro. O que se verifica é o tratamento da marca, posto que não é mais o pai o responsável pelo gozo pulsional. Este Outro do nome que se fazia parceiro do gozo do sujeito no fantasma, que dava o seu lugar fálico no corpo, está ausente ou desaparecendo.

No seminário 6, Lacan refere que um ponto e loucura é quando se perde o suporte do fantasma, que o fantasma é um suporte, e que sem esse suporte se está louco, o que implica a perda da articulação entre o desejo e o gozo. São vários os modos pelos quais Lacan situa a perda do suporte do fantasma, ou seja, não somente quando não há um fantasma constituído, e isso seria uma forma de demonstrar que todo mundo é louco. A eclosão na neurose também tem a ver com a irrupção de um gozo e com a dificuldade em circunscrevê-lo, e nesse sentido não há tanta diferença entre psicose e neurose.

Percebemos a afinidade do esquizofrênico e dos autistas com as máquinas – computadores, tablets, celulares, vídeo games, etc. Estes lhes oferecem toda uma possibilidade de conexões que podem permitir conectá-los via uma por meio de outra lógica, que não a do sentido, que não a do discurso.

Assim, frente às soluções singulares dos sujeitos esquizofrênicos, poderíamos quase predizer o sucesso da obtenção da saúde para todos. De fato, a queda do pai simbólico e dos ideais deixou seu lugar aos mercados dos corpos simbólicos de substituição. Vemos o quanto progride a Apple, por exemplo, com aplicativos de medidas e predições, das leituras do corpo, aconselhando a respirar e a se levantar durante o dia, medindo os batimentos cardíacos, etc.

Considerar que o sujeito psicótico sofre da falta de um operador da amarração do Simbólico, Imaginário e Real, que seria o Nome-do–Pai, ou considerar que esse operador não faz mais do que estar no lugar de um naquilo que falta estruturalmente não nos direciona para a mesma perspectiva terapêutica, segundo Zenoni. No segundo caso é possível apostar em outros operadores que podem fazer suplência, como o Nome-do-Pai, a um nó estruturalmente faltoso. A prática deve se orientar sobre as modalidades de se seu tratamento fora do discurso que o próprio sujeito produz e se submete ao mesmo tempo. Ainda segundo Zenoni, tais formas de tratamento, inventadas pelo sujeito, podem nos inspirar e nos guiar no acompanhamento que lhes oferecemos.

Notemos que essa acentuação da dimensão pragmática da pratica analítica, correlata à versão esquizofrenia da psicose, tem consequências para a clínica de forma geral, e concluímos, ainda segundo Zenoni que a Pai-versão parece ser somente um caso, ainda que seja o mais frequente, de uma função mais geral. Ela é somente uma das versões do laço. É na ponta do gozo não absorvido pelo significante – que não se esgota no Ideal, na identificação, na Lei, que reside o que faz para cada um sua irredutível diferença.

 

[1] Formulações sobre a causalidade psíquica, Lacan, in Escritos, Jorge Zahar Editor, São Paulo, …… por data.

[2]

[3] Opção Lacaniana on line