Trabalho apresentado na VIII Jornada do Clin-a
Integrantes do Cartel:
Bianca Vitullo Bedin, Flora Karina de Paula, Francine Negrão, Katiuscia M. R. Gonçalves, Telma Cristina Palmieri, Veridiana Marucio.
+1- Patrícia Ferranti Bichara
O caso Diva
Diva, 39 anos, iniciou tratamento no CAPS Estação, na cidade de Campinas, em 2001, encaminhada pelo albergue municipal.
Quando chegou, em sua fala destacava-se o significante “menina de rua”, com o qual se identificava, apresentando-se delinqüente e com freqüentes transgressões da norma social e regras do serviço: realizava furtos, utilizava drogas, ameaçava funcionários e usuários envolvendo-se em situações de agressão dirigida a outros ou a si e principalmente engolindo objetos ou se cortando com eles.
Em relação à sua história D. relata que aos seis anos de idade seu pai saiu de casa após se separar de sua mãe. Levou consigo os filhos homens, situação que ela não pôde simbolizar tendo como conseqüência sua primeira passagem ao ato ao cortar sua vagina, a esse respeito afirma que cortou seu pênis, já que nasceu homem, escolhendo tornar-se mulher “para sofrer no mundo”.
A mãe era uma cantora de rádio e após sua morte D. e os irmãos foram morar com uma tia. O encontro com o sexo fora traumático desde muito cedo, conta ter sido abusada sexualmente na infância por primos, irmãos e o tio e que aos 12 anos solicitou ser internada na Febem, onde acreditava que seria bem cuidada. Na Febem foi assediada sexualmente por duas meninas, reagindo tão violentamente a isso que se questiona se as matou. Essa dúvida ainda a angustia. Após o episódio fugiu.
Foi viver na rua, onde virou “bandida de verdade”, relata que cometia furtos, assaltos a banco, envolvendo-se inclusive em assassinatos, para garantir o consumo de drogas. Foi presa algumas vezes, mas quando viam que era ”louca da cabeça”, a internavam.
Relata outro episódio de abuso sexual quando adulta, desta vez por um médico, engravidando nesta relação. Durante alguns anos de seu tratamento a expectativa de reaver o filho e a demanda que fazia para que a auxiliássemos neste processo foi assunto predominante. Ela “tomaria jeito” com a responsabilidade do cuidado com o filho.
Antes de chegar ao CAPS, D. e um namorado viviam em cemitérios, junto a um outro morador de rua. Segundo seu relato desenterravam cadáveres e eles a obrigavam a comer a carne, situação de enorme horror. Esta confissão, feita à praticante responsável pela condução do caso, acarretou uma grave crise, passou a questionar, de forma ameaçadora, se a praticante não tinha medo de ser comida por ela.
Iniciou um relacionamento amoroso com outro paciente do CAPS que já dura alguns anos, pelo que conta nunca tiveram relações sexuais, é dominadora tratando-o como objeto e sente muito ciúmes, acredita que é desejado por todas as mulheres. Fica extremante paranóica com os homens com quem manteve relações sexuais, pois estes a “comeram”, como diz, sentindo-se sempre abusada. Às vezes tem vontade de “comer uma mulher”, mas afirma que precisará esperar o dia certo em que seu pênis voltará a crescer.
No início do tratamento D. apresentava-se de maneira totalmente impulsiva, com muita freqüência quebrava vidros, engolia os cacos e utilizava-os para se cortar. Engolia agulhas e as introduzia pela pele. Acredita que as agulhas caminharão por seu corpo até chegarem ao coração, quando então morrerá, do coração, como a mãe. Também se machucava com freqüência batendo a cabeça na parede, jogando-se em frente aos carros, envolvendo-se em brigas. Ingeria comprimidos, alfinetes de costura, chaves.
Em suas relações pessoais prevalecia a ameaça de agressão física, contra si e contra o outro, caso não obtivesse o que queria, geralmente uma foto, dinheiro, cigarro, rádio ou outro objeto que quisesse trocar, ganhar ou tomá-lo de volta após tê-lo trocado ou dado de presente.
Lacan em “Pequeno discurso aos psiquiatras de Saint’Anne”1 aponta que na psicose não há demanda do objeto a, pois ele está no bolso e é por isso que o louco é livre, pois não depende do Outro para desejar. No entanto, “O sujeito que quis subtrair-se à dialética do desejo do Outro é confrontado com um Outro real, obsceno e feroz, que quer gozar dele, ávido pelo objeto precioso que ele mantém consigo”2.
Podemos dizer que as auto-mutilações, agressões dirigidas aos outros, assim como a maneira peculiar de fazer circular os objetos da cultura, são tentativas que D. engendra de afastar esse objeto, que causa angústia. Entretanto ao afastá-lo há nova angústia, como se “largasse” a si mesma e surge a necessidade de retomá-lo, o que faz de diversas maneiras: ingerindo, enfiando em seu corpo, manipulando, tomando-o à força.
Dos objetos da cultura3 que procura obter, as fotos, o rádio e a boneca são os preferidos. Todo mês quando recebe seu salário compra um rádio e uma boneca e os vende ou troca logo em seguida, mas sempre mantém um rádio ao alcance da mão.
Gosta de ser fotografada e ter as fotos consigo, quando não às tem vasculha todo o CAPS, revirando bolsas e abrindo armários, a tentativa de impedi-la de ter acesso são geralmente precipitadoras de passagens ao ato. Às vezes utiliza as fotos para presentear alguém, mas não raramente as pede de volta. Seu álbum de fotos é o único objeto que consegue manter consigo. As fotos parecem ordenar os fragmentos de sua imagem corporal.
Há uma relação com o objeto oral na quantidade e variedade de coisas que ingere. Além dos objetos estranhos que consome, também é voraz na alimentação, apresentando um quadro de diabetes e obesidade. Comumente vomita após a ingesta, vasculhando em seguida o que vomitou. Comportamento que também apresenta em relação às fezes.
Podemos dizer que se servindo dos objetos da cultura D. tenta dar consistência ao objeto e retirá-lo do bolso, fazendo-o circular no Outro, sendo esta uma estratégia para dar tratamento ao real, o que produz certa estabilização.
Seu local de tratamento é uma instituição de saúde mental de caráter público, pioneira na construção de redes substitutivas ao manicômio, com a criação de CAPS, centros de convivência e oficinas de trabalho e mantém um setor de alta complexidade onde D. vive atualmente, após sucessivas tentativas mal-sucedidas de morar em pensões, repúblicas e serviços residenciais terapêuticos.
A psicanálise se faz presente na prática de alguns trabalhadores, sendo um dentre os vários discursos que aí operam.
Pautados pelo respeito aos direitos do doente mental e valorização de sua subjetividade, e certa dose de “candura”4, este coletivo5 de trabalhadores pôde recebê-la, com suas características bizarras e impulsividade.
Num primeiro momento, a instituição veio cumprir sua função social de proteção. D. que desde muito cedo, circulava pelo mundo de maneira errante, tomada por um gozo desregulado, encontra acolhida e cuidados.
A partir da transferência, que então se estabeleceu, consentiu em fazer uso desta instituição e seus dispositivos de tratamento. Entendemos que nas trocas que realiza com a equipe pode distanciar-se do objeto, tirando-o do bolso, mas mantendo-o ao alcance, permitindo que circule sem que se sinta invadida pelo que deu e não sabe mais onde está.
D. troca presentes com seus cuidadores: um colar, um óculos, um batom ou uma sessão de fotos em local especializado. Infinitas negociações para conseguir um empréstimo, que ela faz questão de pagar assim que recebe seu salário.
E desta maneira segue, negociando, fazendo circular algo de seu, recebendo algo do outro, com visível redução da agressividade.
Referências Bibliográficas.
- Lacan, Jacques. “Petit discours aux psychiatres”. Conferência pronunciada no hospital Sainte-Anne em 10 de novembro de 1967 a convite do Cercle d’Études Psychiatriques. Inédito.
- Associação Mundial de Psicanálise. (2008).Scilicet, os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa.
- Miller, J. A. (2006) “AMP 2008 – Os objetos a na experiência analítica”. Opção Lacaniana, 46: 30-34.
- Silva, R. F. da. (2007). “Reflexões sobre a reforma psiquiátrica a partir da vivência Cândido Ferreira”. In Merhy, E. E. & Amaral, H. (org.), A reforma Psiquiátrica no Cotidiano II”. São Paulo: Hucitec.
- Matos, S. De. (2003) “O uso da psicanálise em uma instituição invisível”. Opção Lacaniana, 38: 38-42.