Relatoras: Mariana Furtado Vidigal

Veridiana Marucio

 

Este trabalho parte da seguinte questão: há um novo modo de conceber a entrada em análise na atualidade? Essa pergunta toca diretamente a prática clínica e nos convoca em cada novo encontro com um  analisante.

Partimos do princípio de que o analista, do começo ao fim, da entrada ao final de uma análise, opera em posição de causa. Mas, antes disso, perguntamos: Por quê eles vêm?”[1]. O que tem trazido os indivíduos contemporâneos a uma análise?

Brousse[2], em entrevista recente, nos fala do individualismo como fenômeno contemporâneo e da ascensão dos egos, uma homofonia com o francês les égaux: os iguais, apontando a ascensão ao zênite tanto do ego quanto dos iguais, o que faz da demanda de uma análise hoje, na sua maioria, uma reivindicação da restauração da individualidade, do “eu sou o que eu digo”[3].

Esse individualismo se refere ao eu (moi), a uma consciência de si, um saber já sabido sobre o gozo e que se fortalece, por exemplo, em lógicas identitárias, diagnósticos encontrados no Google, na  proliferação das imagens nas redes sociais e pela identificação entre os iguais. Diante do excesso de informação, cada ego pode dizer o que  acredita ser, tomando a imagem de si como suporte [4].

Com Lacan[5] aprendemos que “se o inconsciente é algo de surpreendente, é porque esse saber é outra coisa”. O “saber não-sabido de que se trata na psicanálise é um saber que efetivamente se articula, que é estruturado como uma linguagem”. Esse processo passa pelo endereçamento ao Outro que o analista encarna, a partir da transferência, possibilitando uma historização em torno do furo no saber que indica o impossível da relação sexual.

Diante disto, o primeiro impasse que destacamos no que concerne a essa forma de apresentação de demanda é o fato de que o indivíduo é aquele que não se divide e o sujeito em análise é dividido – o sujeito do inconsciente é o que se apresenta no nível do Je e não do moiJe como um vazio que faz surgir um não-sabido e não o eu inflado pelo saber de si. Portanto , para que uma análise seja possível é  preciso “uma subversão que se produza na função, na estrutura do saber”[6]. Como tocar a consistência do saber relativo ao ego, fazendo surgir uma demanda de análise?

Deparamos-nos, também, com um segundo impasse: na dimensão dos Les egaux, há uma autonomia do ego em relação ao Outro que, na época do Outro que não existe, pode aparecer como uma espécie de posição cínica, um rechaço de todos os semblantes ou um viver no mundo de forma associal .[7] Como produzir um endereçamento ao Outro que não existe?

O terceiro impasse se refere aos efeitos desse contexto também no nível do sintoma. Há, hoje, a prevalência da dimensão do gozo do Um, expresso em sintomas que se manifestam “como uma presença real, como iteração do mesmo, do Um-sozinho” [8], “uma fala que é simples conjunção do Um e do corpo, que não está ligada a um saber mas a uma satisfação”[9]. Essa forma de apresentação do sintoma produz impasse no que diz respeito à entrada em análise tomada como a instauração do Sujeito Suposto Saber uma vez que não se endereçam ao Outro e, consequentemente,  não se deixam apreender pelas tentativas interpretativas do analista. Certamente não é o caso de restabelecer o lugar do Outro sustentado pelo Nome-do-Pai. Seria, então, a noção de Outro rompido, dada por Lacan no Seminário 24, um norteador?

Destacamos acima os impasses que foram discutidos em nossos encontros e a partir dessas três questões abordaremos as possíveis formalizações de uma entrada em análise no contexto atual.

 

Da demanda à entrada em análise

Então,  por que eles vêm? Se eles vêm é porque há uma demanda em jogo, mesmo que esta seja sustentada pelo saber sobre o ego e pelas categorias alienantes do discurso do mestre. Não se trata de descartar de imediato o saber que o paciente traz sobre si, mas de operar a partir dele para que uma demanda de análise possa produzir-se. Se eles chegam, é porque houve um disfuncionamento no programa de gozo, uma perda de satisfação com o sintoma que trouxe um sofrimento ou até mesmo uma urgência. E de que ordem é essa urgência?

Não é a urgência da exigência social, a norma que apaga o sujeito contemporâneo, levado a uma corrida que o empurra à utilidade e que o esgota pelo frenesi do discurso do mestre moderno. A urgência que pode precipitar uma análise difere-se da pressa contemporânea, do agir inevitável, rápido e que vem responder ao empuxo superegóico do goza![10]

A emergência da urgência experimentada por um sujeito quando ele busca uma análise, dá sinais de um encontro traumático com um real, que o desestabiliza e o impede de seguir o curso de sua vida. Esse é um momento decisivo, instante de ver que define um antes e depois.[11] Lacan atribui um valor à urgência, dando a ela muito cedo em seu ensino uma atenção particular, conectando-a à fala [12]. A urgência rompe o enquadre da realidade e fragmenta o espaço e o tempo das rotinas ordinárias, precipitando o sujeito em outra temporalidade, assinalada pela angústia. Entretanto, diferentemente da angústia que apaga o Outro, a urgência subjetiva mantém aberta a demanda ao Outro[13]. Torna-se, então, possível encontrar um analista e arriscar a dizer alguma coisa sobre isso que lhe acontece.

Lacan apresenta uma nova perspectiva, substituindo a urgência subjetiva por “casos de urgência”[14], articulando-a ao significante “satisfação”. Trata-se aqui da urgência do falasser, com a qual o psicanalista, diz Lacan[15], aceita fazer par. Nesta via, o ato de entrada na experiência analítica implica em dar satisfação ao analisante, e dá-la consistiria na urgência do analista e numa nova modalidade de demanda do analisante. Esta urgência é da ordem de uma exigência imperiosa de satisfação no registro do Um[16].

O analista, ao ser chamado a dar satisfação àquele com quem faz par se difere do grande Outro, Sujeito Suposto Saber[17], este a quem o paciente se dirige por uma demanda de saber sobre essa irrupção fora do sentido. Para Miller (2018)[18], do ponto de vista do simbólico, o que chamávamos de demanda é, na verdade, um pedido de urgência, “e esse pedido é o que se avalia durante as entrevistas preliminares: há ou não urgência de satisfação? O sujeito chegou ao ponto de já não saber lidar com seu sintoma?”. Trata-se de um novo modo de conceber a entrada em análise pela via da urgência de satisfação afetada por um disfuncionamento do gozo do Um e não pelo saber dirigido ao Outro.

Propomos, portanto, outra via para o percurso que vai  da demanda à entrada em análise, a via da satisfação que se refere ao Um, ao inconsciente real, que passa pelo consentimento do analisando e do analista e pelo manejo da urgência do falasser, prolongando o instante de ver na análise. Assim,”o ato de retornar ainda e outra vez, é isso que urge, que empurra no nível do real. É a satisfação urgente”[19], uma exigência pulsional inconciliável com o Ego, mas que faz o paciente voltar, a cada vez. A temporalidade do inconsciente real não é mais a de uma construção de saber por uma sucessão e sim um acontecimento que se produz em cada sessão, a partir do manejo do analista[20].

Eles vêm para nomear, pela fala, Isso que os atravessa e que se refere ao gozo do Um, opaco ao sentido furando a lógica do “les egaux” e que se enuncia pelo “eu venho por Isso”[21], “isso que sonha, que falha e que ri” nele, isso que é “explosivo”[22] na cadeia significante, contrariando o saber consistente do ego e da homeostase do gozo. No começo de uma análise estão presentes o inconsciente transferencial e o inconsciente real : um que se refere ao saber e ao amor de transferência e outro à carga real de gozo, explosiva.

Miller[23] propõe a urgência de satisfação como um modo de dissipar a miragem da transferência para se chegar a um plano mais profundo do que preside uma análise, o do gozo. Porém, na clínica atual, vemos em alguns casos que a miragem da transferência nem chega a se formular e é com a urgência de satisfação e com o predomínio do gozo do Um, que dialoga sozinho e não aguarda o S2 que o analista é convocado a operar. Tarrab[24] faz referência à alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos para elucidar como a emergência do gozo do Um está cortada de toda a cadeia e, portanto, não surge como um retorno do recalcado do inconsciente.

Numa análise, estamos diante do que se pode decifrar do trabalho interpretativo do inconsciente e do que se pode captar do gozo opaco[25], ou seja,  do que se pode acolher da infiltração do gozo no trabalho de deciframento[26] e a transferência inclui, dessa forma, a “carga do gozo real”[27].

O analista será aquele que perturba, que se intromete na conjunção do Um-corpo, no solipsismo do gozo, fazendo-se de par. Como trauma, extrai o S1 desconectado de S2, separado do Outro, apontando o furo do sentido, como aquele que faz ressoar os ecos do dizer no corpo[28]. Temos aqui o Outro não somente barrado, mas rompido, designado pelo S(A/) que surge no tropeço, “no passo em falso, no erro que se faz, inadvertidamente, quando se fala”[29].

O inconsciente real, diz Miller[30], esse que não se deixa interpretar, é o lugar do gozo opaco ao sentido, mas que pode, pela ficção, tornar-se um falador. O analista ao extrair o Isso que perturba o falasser, faz ressoar o efeito de furo que acompanha o choque de S1 no corpo, abrindo, dessa forma, uma conexão com a fala e uma saída para o solipisismo do inconsciente. Fazer falar a carga real, explosiva, de gozo e promover uma historização pode permitir ao paciente sair da posição de estar determinado pelo sintoma para uma atuação inédita que implica o próprio programa de gozo.

Nesta vertente, há uma brecha para uma demanda de análise, para o consentimento do analista como par e uma entrada formalizada a partir da urgência instaurada pela dimensão explosiva do gozo que o atravessa. Assim, “o desativador de minas, metáfora que Brousse toma emprestado do filme “Démineur”[31],  é o processo analítico”.

Uma reconciliação com o gozo que é equivalente com a resolução do desejo de um sujeito[32]. O analista institui a transferência como “suposto saber ler de outro modo” e suposto transformar um S1 em causa do desejo, deixando para isso seu lugar à invenção[33]. Vislumbrar uma satisfação que aponta para uma solução singular com seu gozo e com seu sintoma, menos explosiva, pode engajar o falasser em um querer dizer ao analista, em uma posição desejante.

Portanto, a formulação de uma anterioridade do Um em relação ao Outro, no último Lacan, nos ensina que o gozo opaco ao sentido é o que existe e o Outro – e aqui situamos o inconsciente transferencial – é o que vem se acoplar aí para lhe atribuir sentido, como semblante[34]. Logicamente, a entrada em análise precipita seu fim e a satisfação testemunhada pelo passe ao seu final é uma confirmação dessa aposta feita no que já estava lá desde o início.

Os sintomas da atualidade têm evidenciado que essa concepção do inconsciente é consonante com o modo de chegada dos analisantes de nossos dias e os limites das intervenções analíticas pela via do sentido e da sustentação do Outro, garantidor da ordem simbólica. Nesta concepção apresentada de entrada em análise, produz-se um artifício que permite, a partir do singular de um gozo, inventar um laço com a fala e com o analista como par. Um laço que, no melhor dos casos, permite ao sujeito encontrar um lugar em seu mundo e pacificar seu corpo.[35]

 

 

[1] Entrevista Brousse (2023). Sur L’um-dividualisme moderne. In  https://youtu.be/e5cY_80FfME Acessado em junho de 2023.

[2] Idem.

[3] idem.

[4] Idem.

[5] Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na capela Sainte-Anne. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.p.23

[6] idem.

[7] Miller, J-A. Entrevista El nacimiento del campo freudiano – junho de 2023. In: https://www.youtube.com/watch?v=gAVcOuaUyYM . Acessado em junho de 2023.

[8] Souto, S. (2019). Como conceber a transferência do Um que dialoga sozinho. In:: https://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/2019/06/21/como-conceber-a-transferencia-na-clinica-do-um-que-dialoga-sozinho/ . Acessado em junho de 2023.

[9]  Idem.

[10] Contribuição de Cláudia Santa

[11] Stevens, A. In http://nls-quebec.org/c/18022019-1812-ponctuations-sur-lurgence. Acessado em 10/07/2023. Tradução nossa.

[12] Bouton C., Le temps de l’urgence, Paris, Editions Le Bord de l’eau, 2013, p. 34

[13] Bonnaud H., Le corps pris au mot – ce qu’il dit, ce qu’il veut, Paris, Navarin, 2015.

[14]   Seynhaeve, B. In https://www.nlscongress2019.com/speechesfr/ouverture-du-congrs-2019-de-la-nls-par-bernard-seynhaeve, acessado em junho de 2023.

[15] Lacan, J. (1976) Prefácio à edição inglesa do Seminário 11.Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. Pp-567-569.

[16] Alberti, C. (2019). Urgência e satisfação. Revista Curinga, n.48. Belo Horizonte: EBP- seção Minas.

[17] Lacan…Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

[18] Miller, J-A. (2018). Aposta no passe: seguido de 15 testemunhos de Analistas da Escola, membros da AMP. Rio de Janeiro: Contra-capa.  pp.77-78

[19] KING, P. (2019). Au début et à la fin. In: http://nls-quebec.org/c/18022019-1812-ponctuations-sur-lurgenceAcessado em julho de 2023.

[20] Contribuição de Simone Souto

[21] Marie-Hélène Brousse . Por que é que ele vem? Opção lacaniana nova série online, n.4. 2011. In: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_4/porque_que_ele_vem.pdf

[22] idem.

[23] Miller, J-A (2018). O passe do falasser. Aposta no passe, seguido de 15 testemunhos de Analistas da Escola, membros da EBP . P.110

[24] Tarrab, M. In http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/mauricio-tarra. Acessado em julho de 2023.

[25] idem

[26] Contribuição de Adriane Barroso.

[27] Fuentes, M. J. S. A entrada do amor. In: Ap/bertura: boletim do Encontro Americano de Psicanálise, 4, 2023. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/portfolio-items/ap-bertura-4-2/. Acessado em junho de 2023.

[28] Clotilde Leguil em conferência proferida no Encontro Brasileiro de 2022.

[29]    Contribuição Simone Souto

[30]  MILLER, J-A (2018). Aposta no passe, seguido de 15 testemunhos de Analistas da Escola, membros da EBP, p.110

 

 

[31] Aquele que desativa minas

[32]  Santiago, A. L. (2023). Reabrir ao sujeito o caminho de seu sentido. Rubrica 1 – In:  Boletim do XI ENAPOL. In: https://enapol.com/xi/pt/ap-berturas-2/ Acessado em julho de 2023.

[33]  idem.

[34]  Miller, J-A. 2009. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar

[35] Tarrab, M. La fuga del sentido y la práctica analítica.Buenos Aires: Grama Ediciones, 2008. p 36 (Tradução nossa)