Veridiana Marucio

Da solidão-sem à solidão-mais.

A comunicação muda

O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros.
Às vezes, quando duas pessoas estão juntas,
apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra
é o sentimento de solidão.

Solidão como negatividade

De acordo com CIGNA U.S. loneliness index, a solidão entre os americanos alcançou níveis epidêmicos. Nesta pesquisa, faz-se uma diferenciação entre a quantidade de laços e a qualidade. A maioria dos entrevistados diz sentir que suas relações não são significativas.

Segundo a pesquisa, quase 50 % dos adultos americanos se sentem só. O autor desse estudo diz que os dados dessa pesquisa são muito significativos e que refletem uma ameaça emergente para a saúde dos americanos. Segundo ele, se faz urgente mitigar o aspecto negativo que tem o impacto da solidão nos indivíduos, tanto física como emocionalmente.

Pesquisas como essa evidenciam que há um aspecto negativo atribuído à solidão. Tomada pelo discurso médico hegemônico, ela passa a ser considerada uma manifestação patológica de subjetividades mal adaptadas ao social. A partir de um score, resultado de questionários, produz-se toda uma problemática em torno da solidão e do mal que ela pode causar a humanidade.

Dicas de como vencer a solidão não faltam, como: tomar ar fresco, se exercitar, permanecer ocupado, meditar, se planejar, adotar um animal de estimação ou procurar ajuda especializada. Quando isso acontece, recebemos esses sujeitos, tentando cumprir todos esses imperativos, sem sucesso.

Parece-me claro que a psicanálise não pode evitar lançar o seu próprio questionamento sobre essa questão. À que se deve a atual dificuldade do sujeito em fazer laço? Podemos ou não considerar que, no contemporâneo, os laços são mais frágeis?

As consequências da mutação do discurso atual vem sendo foco das produções da nossa comunidade psicanalítica, pois não desconhecemos que ela produz novos sintomas, bem como novas formas de segregação. Mas seria real considerarmos que os sujeitos de hoje são mais sozinhos que os de outros tempos? O sujeito contemporâneo, hiperconectado, queixa-se mais da solidão? Se sim, como podemos pensar esse paradoxo?

A solidão como falta e a solidão como excesso

Dominique Miller, a partir da frase de Lacan pronunciada em seu ato de fundação – Só como sempre estive – diz que esta é a posição fundamental do ser humano. O Outro é, portanto, uma interpretação segundo os diferentes momentos da vida, às vezes mesmo segundo instantes diferentes da vida.

Partiremos com Lacan da hipótese de que há uma espécie de solidão essencial. Segundo ele, quem fala só tem a ver a solidão. Parte do A para dizer que somos sujeitos no A, como falta. Trata-se de toda a sua primeira elaboração a propósito do sujeito como falta-a-ser e nesse sentido, proponho a ideia de pensar a solidão como falta mais do lado do sentimento de tristeza e de culpa.

Assim como nos estados de tristeza, a solidão estaria ligada à uma desestabilização dos significantes do Outro. Serge Cottet, A Bela Inércia, diz que Lacan insistia no aspecto ético da tristeza, e que aqui deve-se dar toda a atenção ao matema de Lacan I (A).

A partir dos desenvolvimentos de Lacan a propósito do sinthoma, podemos abordar a solidão em relação ao sujeito do inconsciente como falta, mas também em relação ao gozo, ao parlêtre e a relação especial do corpo com ele mesmo. Ou seja, do corpo do Um, e não do corpo do A.

Esse gozo solitário se evidencia a cada vez que alguém se queixa de não poder se controlar diante de um pote de nutela, de uma tela de computador ou de uma atividade esportiva, mesmo quando tudo parece ir bem com o parceiro ou parceira, no momento em que se sentem sós. Aqui não há falta, mas excesso, e a solidão aparece mais como uma angústia.

Lacan parece ter deduzido que no que concerne à sexualidade humana, iria-se passar do Um fusional, da complementaridade entre os amantes ao Um sozinho do gozo fálico. Se antes havia o laço, era porque havia a falta. Na atualidade, goza-se do próprio corpo e dos objetos alojados no Outro. A complementariedade entre um homem e uma mulher, no nível do gozo, é um impossível.

O real que resulta desse impossível exige do ser falante uma resposta, uma bricolagem ou um sintoma que venha suprir esse exílio de que cada um padece, devido à ausência de proporção e de harmonia entre os sexos.

Portanto, na época da inexistência do A, cada sujeito é parceiro de sua solidão no nível do gozo, onde o que há é, não a falta, mas sim um cada um por si pulsional. Esclarece-se o falso paradoxo levantado na primeira parte. Há hiperconexão, excesso, mas há também há exílio e solidão.

A solidão de um novo laço

Se o A não existe e não há a complementariedade entre os sexos no nível do gozo, o que um analista pode nos dizer a propósito da solidão, quando já se sabe qual é seu verdadeiro parceiro? O que se torna a solidão, quando um sujeito não se orienta mais a partir da solidão da fantasia, do ser e do sintoma, mas sim a partir da solidão do sinthoma?

A solidão pode ser a razão pela qual um sujeito busca uma análise, mas em seu final, ela passa a ser um motor que anima o desejo de saber inconsciente. Essa solidão não seria efeito da inexistência do A, da falta de garantias ou do objeto como um mais de gozo, mas a consequência da destituição subjetiva, quando o analisante autoriza, a partir do atravessamento da fantasia, que o objeto opere como causa.

Nesse sentido, o analista é aquele que se autoriza de si mesmo, como diz Lacan, ato solitário que se testemunha diante de outras solidões. Talvez no momento do passe tem-se a ilusão de que não estaríamos sós. Para Miller, os analistas – os freudianos, os lacanianos – são colocados na posição, que a historia verificará sempre e ainda mais, de parasitas, parasitas da solidão.

Autorizar-se de si mesmo é autorizar-se dessa perda radical, o objeto a, que encapsulamos com o falo nas nossas fantasias, ofertando ao Outro. A questão é que o objeto a não é do Outro, não é do sujeito – é um abismo e uma margem de liberdade.

1 Poema de Clarice Lispector

2 https://www.cigna.com/newsroom/news-releases/2019/cignas-us-loneliness-index-provides-actionable-insights-for-improving-body-and-mind-health

3 https://www.lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2017/09/10-Ironik-25-LSDD-Dominique-Miller.pdf

4 Lacan, J. “Ato de Fundação”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 235.

5 Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2008 (terceira edição), p. 137

6 Cottet, S. A Bela Inércia nota sobre a depressão em psicanálise. Curinga 27. As novas formas do sujeito suposto saber. Belo Horizonte, 2007.

7 Miller, D. https://www.lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2017/09/10-Ironik-25-LSDD-Dominique-Miller.pdf

8 Lacan, J. “Ato de Fundação”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

9 Miller, D. https://www.lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2017/09/10-Ironik-25-LSDD-Dominique Miller.pdf

10 Miller, J-A. La passe bis. La Cause Freudienne 66, Paris: Navarin Editeur, 2007.p 207 à 213.