A queda do falocentrismo – consequências para a Psicanálise
Plenária- Eróticas
Desejo e Gozo – Quando a falta, falta.
Veridiana Marucio

Em nossa cultura, atribuímos ao erotismo um papel muito específico e que atravessa a nossa história, sendo que muitas coisas nesse campo se transformaram em comparação ao que denomina-se erotismo clássico. Partiremos da constatação de que o erotismo, clássico ou atual, é um atributo exclusivo da sexualidade humana, inerente a desnaturalização do sexo própria a nossa espécie. Segundo Miller, há uma desprogramação do sexo na espécie humana.
Para localizar o erotismo, poderíamos seguir Sade, Bataille, Celine Andrea e tantos outros que consideram o erotismo como um campo que por definição questiona a realidade, tal como no campo das artes e que, portanto, para a psicanálise, torna-se um lugar privilegiado para compreender como o homem contemporâneo se relaciona com o que Lacan designou como um ponto de real, não simbolizável, ao afirmar: Não há relação sexual.
Essa afirmação, fundamento do discurso analítico, segundo Marie-Helene Brousse, no momento de sua enunciação causou um grande escândalo. Ao afirmar “não há relação sexual”, Lacan não está dizendo em absoluto que não há ato sexual, desejo sexual ou amor, mas está evidenciando que não há complementaridade lógica entre os sexos, que não há garantias de um gozo universal.

Para Lacan, o inconsciente, os sonhos, os lapsos e os sintomas, falam de sexo e eles falam de sexo justamente pela impossibilidade de escrever a relação.
Muitos são os efeitos encontrados no sujeito moderno ao deparar-se com esse real. Muitas vezes, busca-se na cultura vigente anteparos ou defesas, o que pode resultar em uma grande confusão, essencialmente quando essas estratégias perdem a relação com a falta que lhes concerne, ou seja, quando a falta, falta – alimentando vários sintomas da nossa época, aos quais convencionamos o termo de sintomas contemporâneos.

Supor que uma relação sexual possa ser escrita entre um homem e uma mulher necessita a univocidade do nome do pai, porém, na sociedade atual, essa afirmação de Lacan é quase uma evidência. O que antes se apresentava velado, ou seja, não apenas se mostra, mas também se coloca como matéria e objeto de fetiche e de consumo.

2- Como pensar o erotismo no contemporâneo?

Assistimos uma invasão do sexo no cenário atual, desde a erotização mais soft do dia a dia até a pornografia mais hard. Os anúncios publicitários, com a célebre doutrina: “nos vendemos sonhos”, e mais especificamente o sonho sexual, como nos lembra Laurent, vem nos indicar que a queda da função que dava credibilidade às proibições de outrora e que definia uma erótica própria àquele período, traz à tona o objeto de satisfação como um mais, como um gozo desenfreado e sem limite.

Nesse sentido, é notório que o discurso atual não apresenta mais o velamento da satisfação nem promove a proibição e a renúncia ao gozo. Além disso, a identificação sexual não se deixa mais capturar nem pela anatomia, nem por uma erótica estática. Elas são, portanto, fluidas.

O sexo passa a ser então um direito, além de ser também prescrito como forma de bem-estar. Um efeito imediato que daí decorre é a fragmentação do laço social em comunidade instáveis, novos arranjos sociais que poderão cair em uma dura normatividade. As identidades de gozo.

Como exemplo, trago a fala de uma analisante que busca atendimento pois se descobriu pansexual, algo que a deixou um tanto perplexa. Ela, que se acreditava primeiro hetero, depois homo, agora, por estar em um relacionamento com um homen-trans recebe essa nomeação. Diz ter encontrado no parceiro tudo que precisa, tudo mesmo! Quando pergunto sobre como era para ela o ato sexual com ele, ela me responde- não tem, então compra!

Entendo que não estamos falando somente da subida do objeto ao Zenith, da era dos gadgets no bolso, mas também de uma consequência que se revela na falta de sentido a qual se referem esses sujeitos aos quais escutamos na clínica, e da ameaça de uma possível devastação, além de um empobrecimento subjetivo e do anonimato. Os algoritmos jogam aqui sua partida.

Não se trata de estarmos ou não, nós analistas, contentes com os efeitos da modernidade, sejam eles tranquilizadores ou devastadores para cada sujeito, mas considerar que essa nova ordem se demonstra análoga à lógica do não-todo proposta por Lacan.

Me parece interessante, nesse contexto, trazer o depoimento de três feministas que fizeram parte da chamada segunda onda e que apresentam uma grande virada em suas declarações.

A primeira, Germaine Greer, que lançou seu famoso livro – The female Eunuck nos anos 70, dirigido contra as políticas autoritárias, a família nuclear e o poder em geral escreve: “As antifeministas reclamam que a emancipação das mulheres implicará no fim do casamento, no fim da moralidade e no fim do estado. Vemos no final que elas estavam certas”. Trinta anos depois, em uma entrevista para a Times Magazine ela nos diz que se as mulheres estivessem no comando, o Reino Unido retornaria ao rang do terceiro mundo.

Essa mesma reversão aparece também no depoimento de Doris Lessing e Camille Paglia. A primeira, comprometida em seu trabalho literário com o feminismo, em uma recente biografia, se distancia do movimento e vai ainda mais longe ao dizer que lamenta o impacto que o feminismo teve em sua vida pessoal.

Enfim, há uma fissura na ordem social: o pai não é mais o pai da censura. Ele compreende, aprova, encoraja e reconforta.

3- O que fazer então com nossas pulsões?

Lacan propõe uma saída surpreendente. Para ele, o édipo conserva todo seu poder operatório, com a condição de se manter estrutural e não imaginário, porém é preciso considerar que a psicanálise tem também relação com o que vai além, com aquilo que excede a função fálica. Ultrapassando a lógica estrutural, Lacan desloca a questão do feminino- em impasse desde de Freud- do campo do sexo para o campo do gozo. Seguindo Lacan, uma mulher dispõe de um gozo suplementar àquele que a castração regula.

O desnudamento da impotência paterna permitiu a Lacan colocar na lógica a parte do gozo que escapa a hegemonia fálica e que se abre ao infinito (Vincerre). Essa lógica, que ele chamou de não-toda, responde bem à singularidade do gozo feminino que ao invés de se pautar em um discurso homogêneo acerca do que são os papéis sexuais e sociais de homens e mulheres, se pautam na lógica do um a um, na versão particular do que é o feminino e o masculino.

Desse modo, ao mesmo tempo em que a lógica do não-todo pode engendrar uma tendência à desregulação, seja do corpo, do prazer ou do gozo, ela também pode lançar o sujeito em uma construção singular acerca do real da castração.

Portanto, dois modos de gozo distintos são possíveis para o sujeito que se inscreve do lado mulher, o gozo fálico e o que Lacan chama de Outro gozo. A versão não toda do gozo pode advir nos seres falantes, sejam eles homens ou mulheres, e é preciso assinalar que não se deve pensar que esse Outro gozo, o suplementar, passaria pela eliminação do gozo fálico.

Mesmo para a mulher, segundo Esthela Solano Soares, não é evidente aceitar esse gozo Outro. Quer dizer que, para uma mulher, assumir sua posição de mulher, seu gozo feminino, pode necessitar previamente a realização de um longo percurso afim de que ela possa se aceitar como sendo Outra para ela mesma. E para um homem implica não se sentir ameaçado por este gozo que não se inscreve todo no Um fálico, não fazer deste gozo a causa da sua angústia nem o caroço de seu ódio.

4- Nesse novo contexto, em que o gozo esta liberado da crença na relação, como pensar a dialética do desejo e do amor?

Para a psicanálise o passe é sem duvida o que permite apreender essa dimensão. Em um final de análise levado até o passe, encontramos a contingência de um gozo irredutível ao dizer. É essa abertura à surpresa que faz de uma vida uma diferença absoluta o que permite a nomeação de um AE.
Tomo como exemplo alguns fragmentos de dois testemunhos de passe que podem nos elucidar como o falasser encontrou sua solução para o problema do gozo.
No caso de Jesus Santiago foi necessário, como ele testemunha, desembaraçar-se do uso do falo que se colocava a serviço do ideal viril. Como defesa, o autismo do falo causava entraves em sua vida amorosa. Consentir com o vazio, em detrimento do amparo da fantasia, permitiu um refinamento no uso da pulsão.

Seguindo alguns de seus relatos, destaco o momento em que a nomeação “Você é uma mulher do amor menosprezado” desata o nó da vida amorosa concernente à identificação com o viril da mãe. O efeito feminizante provocado pelo gozo sacrificial decorrente desta identificação sofre então significativa mutação. A crença na virilidade da mãe, dissolve-se e com ela todo o sentido sacrificial impregnado na satisfação obtida por meio da fantasia.

O falo como objeto que se torna passível de certa mobilidade coexistia com o furo da pulsão e, por essa via, mostrava-se permeável à incidência no homem do não-todo feminino. Na abertura ao não todo feminino, o viril deixa de ser uma defesa contra as repercussões do feminino e, sobretudo, de se tornar o lado avesso do feminino. Essa abertura revela-se distinta do efeito feminizante gerado pelo gozo sacrificial da fantasia. A virilidade calcada na “mulher do amor menosprezado” torna-se, desde então, inoperante e supérflua.

No momento em que ele capta a armadilha que encerra a virilidade, o falo torna-se resíduo, ou seja, explicita-se sua face de semblante que permite verificar o saber-fazer com o amor que se nutre do furo pulsional.

Silvia Salman em seu testemunho fala da anorexia infantil como um acontecimento de corpo enodado ao gozo do Outro materno. ‘Fechar a boca até quase desaparecer, diz ela, foi a resposta precoce ao enigma daquilo que pôde ser lido na análise como a melancolia na mãe’.

Essa resposta inicial, efetivamente antes do Édipo, com o significante desenho animado, marcou um modo de funcionamento libidinal que foi sendo dialetizado na análise. Primeiro sob a forma do corpo da histeria, ou seja, sob o regime do pai, que tomou seu lugar tanto no sintoma como na fantasia. E, ao final, um pouco além, sob a forma de um corpo de mulher, lugar de um novo regime de satisfação que implica um menos do padecimento do sentido edípico e um mais de consentimento a uma erótica própria do desejo.
No final de seu percurso percebe que não se tratava de encontrar Um significante, mas sim de encontrar-se com a evidência de que o significante estava desanimado. Segundo ela, o impacto de tal encontro permitiu alojar o significante encarnada, que fez vacilar todas as identificações aos significantes do Outro. ‘É um significante novo que se agrega sem formar parte da série, mesmo sendo feita do que resta dela’. Nele se concentrou o corpo, o vivo e o feminino que se obtém ao final, índice de uma satisfação correlativa a ter um corpo que, em seu caso, se possa agarrar.
Evidencia-se a possibilidade, no caso de Silvia, de ir além da ideia do não-todo como excesso e pensa-lo, portanto, como ausência de uma medida universal. Frente ao ilimitado que não pode ser dito pelo falo, ao gozo opaco, uma invenção singular se fez possível.

 

1 MILLER, Jacques-Alain. (2003-2004) Un esfuerzo de poesía. Buenos Aires: Paidós, 2016.

2 Brousse, M.H. Savoir-faire féminin avec le rapport. Les trois R : Ruse, Ravage, Ravissement. In La Cause du Désir Etudes cliniques. La Rochelle : Editions Himeros, 2009. P 19

3 Ibid.

4 Laurent, E. A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte : Scriptum Livros, 2012.

5 Verhaeghe, P. The Collapse of the function of the father and its effects on geder roles. In Sexuation, Londres: Renata Salecl editor, 2000.

6 Acadêmica e escritora australiana, reconhecida internacionalmente como uma das mais importantes feministas do século XX.

7 Greer, G. (1970). The Female Eunuch. Londres: Flamingo, 1993.

8 Sunday Times Magazine, 3 de março de 1996

9 Britânica, autora da obra-prima O Carnê Dourado – um marco do feminismo na literatura.

10 Americana, considerada uma das principais críticas de algumas formas de feminismo. Grande ativista em relação à inserção da mulher no mercado de trabalho, mas repudia as relativizações do que chama de “nova feminista burguesa”. 

11

12 Conferência em Montreal, no dia 27 de abril de 2001. http://www.isepol.com/asephallus/numero_02/artigo_01port_edicao02.htm#_edn1

13 SANTIAGO, J. “Omnia vincit amor”, testemunho apresentado no Congresso dos membros da EBP em abril de 2015

14 LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010, p. 114.

15  Um corpo de mulher. Entrevista a Silvia Salman, por Paola Salinas e Cristiana Gallo. In: http://leonardocr93.wix.com/jornadas2015ebpsp#!um-corpo-de-mulher-entrevista-silvia-sal/cvxo