O medicamento apreendido pela lógica da técnica

O relatório do Inserm sobre as psicoterapias assegurava o triunfo das TCC, denunciando ao mesmo tempo a, digamos, pouca eficácia das psicoterapias analíticas e das relacionais. Logo após, completadas pelos relatórios sobre os problemas de conduta nas crianças e nos TOCs, a série se inscreve em descendência direta das escolhas epistêmicas operadas pela psiquiatria americana há 25 anos.

Essas escolhas têm como corolário um uso das prescrições de psicotrópicos inigualável até então, sendo a psiquiatria nos Estados Unidos atualmente o modelo mais expressivo. Estejamos certos de que ele será empregado no mundo segundo as regras do mercado. Frente à euforia ingênua de uma prescrição que promete a cura de uma vez por todas dos sintomas repensados na medida de uma “clínica científica”, convêm dar provas de uma grande reserva.

Estudos médicos, enquêtes sociológicas, processos de associações de famílias ou de pacientes e notícias de jornais moderam efetivamente e de maneira séria essa nova esperança, denunciando seus impasses e limites. A história recente da disciplina psiquiátrica e nossa atualidade permitem isolar, depois dos anos de estabelecimento do império DSM, os processos, os métodos e as conseqüências idênticas: a mesma deriva do “para todos” se faz presente. Ela conduz ao desaparecimento de um saber especializado, uma desqualificação efetiva e uma falsa universalização “científica”.

A ruptura do DSM: “O homem sem subjetividade”

A mudança de estilo que operou a classificação do DSM-IV atrelado à epidemiologia se produziu no momento do “boom” das neurociências.[1] A mudança na abordagem diagnóstica é simbolizada pela publicação, em 1980, do DSM-III e , em 1994, do DSM-IV. A ruptura aconteceu realmente com o DSM-III. A primeira edição do DSM, em 1952, dá uma boa representação do estado da psiquiatria americana depois da segunda guerra mundial, quando ela mostrou possibilidades limitadas frente aos quadros agudos de traumatismos psíquicos de soldados no campo de batalha, antes da chegada de diversos psicotrópicos que modificariam profundamente a prática de cuidados psiquiátricos.

Essa primeira versão é o reflexo da influência de Adolf Meyer sobre a psiquiatria americana e podemos considerá-la como um compromisso entre a psicanálise freudiana e uma concepção psicobiológica, segundo a qual a noção de reação da personalidade a fatores psicológicos, sociais ou biológicos é central bem como a supressão dos determinantes genéticos, constitucionais ou metabólicos. Esses anos viam o “boom” de uma psiquiatria social e comunitária tendo como conseqüência uma desmedicalização, tanto de quadros clínicos como de interventores no domínio clássico da psiquiatria. Uma conjuntura econômica particularmente favorável permitiu assegurar o reembolso pelo sistema de saúde de mais psicoterapias e de diversificar as categorias terapêuticas de intervenção. O DSM-II, em 1968, manteve essa mesma lógica.

Na metade dos anos 60, críticas intensas surgiram e conduziram a uma revisão fundamental do DSM e a sua adaptação à classificação da OMS (CIM9). As críticas se centravam sobre a dificuldade de obter diagnósticos fidedignos e válidos independente das diferentes teorias psicopatológicas. A falta de consenso no diagnóstico das patologias mentais – má fidelidade para os epistemiologistas – resulta da diversidade de doutrinas psiquiátricas e de um desacordo sobre as causas das doenças.

Descobre-se que a psiquiatria não poderá ser uma a disciplina médica autêntica enquanto deixar uma parte muito importante ao julgamento pessoal dos psiquiatras. A construção de uma linguagem comum, quais sejam as orientações teóricas dos clínicos, surge como a única solução para se chegar lá.

Essa linguagem comum visa, na impossibilidade de estabelecer um consenso comum sobre as causas, estabelecer um consenso sobre a noção de síndrome, por meio de ferramentas ad hoc – coleta de dados fidedignos com critérios diagnósticos e escalas standartizadas. O clínico então não tem outra coisa a fazer a não ser assinalar as casas dos sintomas, sua duração e sua intensidade para diagnosticar tal síndrome. Esse novo consenso obtido pelo preenchimento de casas tem como resultado a impressão de que se trata de entidades naturais cuja disfunção biológica subjacente que a produz se conhecerá um dia.

O DSM-III veio ao mundo em 1980, depois de uma batalha trazida tardiamente pelas associações de psicanalistas americanos que tentaram em vão sustentar a diferença existente entre um manual de classificação epidemiológico, talvez útil para a pesquisa, e um manual de diagnóstico, útil ao clínico. A batalha aconteceu em relação à neurose. Estava dado que se escreveria atrás do termo DSM-III o termo da neurose correspondente entre parênteses, por exemplo: distimia (ou neurose depressiva). O DSM-III-R, publicado em 1987, aplica os mesmos princípios, porém o DSM-IV, em 1994, torna o termo neurose obsoleto.

Vencidos no campo de batalha das neuroses, os psicanalistas tentaram resistir no dos transtornos de personalidade. Os trabalhos dos especialistas do futuro DSM-V, como nota J.-P. Luchelli, radicalizam suas perspectivas com relação à essa última categoria clínica. “A maior parte dos transtornos de personalidade do DSM-IV foi desenvolvida pelos clínicos que tinham uma orientação psicanalítica. Hoje, no entanto, essas categorias são utilizadas por clínicos que têm uma orientação cognitivo-comportamental e neurobiológica”[2]. O projeto é o de dar, em uma abordagem “dimensional”, uma definição dos transtornos de personalidade a partir de uma concepção dita cognitiva do temperamento e das escalas que medirão o comportamento.

Se o primeiro objetivo do DSM III era o de elaborar uma linguagem comum aos pesquisadores e aos clínicos preconizando um ateorismo etiológico, o DSM-IV se apresenta como um manual que poderá servir também de suporte educativo e de ferramenta de ensino da psicopatologia.

Não seria mais simplesmente um livro de classificação, mas sim um manual de psiquiatria ao qual se adiciona uma parte terapêutica que emerge de cada diagnóstico. O DSM-IV tem como bússola conceitual o observável em um dado momento “t”. A descrição do sintoma é baseada em fatos, colhidos por um observador objetivo. O diagnóstico determina uma terapia standartizada do sintoma ou da síndrome. Resumindo, trata-se de ser o especialista de uma descrição da superfície codificada do comportamento humano e o estrategista de um elo cada vez mais direto entre o diagnóstico dessa superfície e o tipo de medicação. O fracasso terapêutico é conseqüência de um erro na precisão da classificação ou da escolha da medicação.

O homem do DSM-IV é um homem à quem é recusada qualquer subjetividade. A ambição do DSM-IV, instrumento do American Psychiatric Association é uma subversão radical do sintoma em nome de um novo S² que apague o passado da clínica psiquiátrica clássica e as contribuições da psicanálise.

O medicamento:

Agente terapêutico e testemunha fiel da doença

A articulação estreita da clínica do DSM ao medicamento é legitimada, pensada a partir da ferramenta estatística. Um medicamento, como sublinha Philippe Pignarre “não é nada sem os ensaios clínicos que precedem seu nascimento e que o acompanharão por toda sua existência, até que outros medicamentos o substituam mostrando sua superioridade[3]”. Os ensaios clínicos não são nada além da aplicação de métodos estatísticos no campo da medicina. O horizonte, atualmente inultrapassável, do desenvolvimento dos medicamentos, não é uma descoberta biológica qualquer, mas a importação do poder dos estatísticos.

Os ensaios clínicos fundam o que chamamos a partir de então de “medicina das provas”, resultado final e regulamento estrito da “ciência clínica”. Os ensaios clínicos, pela via da estatística estão, portanto, transformando a compreensão e a abordagem de todas as doenças e unificando a medicina ao medicamento.

Se esse método assume toda sua pertinência no campo das doenças infecciosas, por exemplo, não acontece a mesma coisa no das patologias mentais, no qual o diagnóstico nunca se repousou sobre a ênfase de um testemunho biológico fiável. “Nenhum testemunho diagnóstico fiável, nem no sentido forte de uma causa nem no sentido mais fraco de uma correlação pôde ser evidenciado, nem na esquizofrenia, nem nas diferentes formas de depressão, nem nas fobias sociais, nem em outros transtornos mentais, que testemunhavam uma descoberta verdadeira sobre a causa biológica de um transtorno mental.[4]

Por essa razão, a pesquisa em psiquiatria faz variar as características do grupo de pacientes, ou seja, os critérios de inclusão, até que esse grupo “responda” de maneira satisfatória à molécula candidata. A conseqüência desse tipo de método é o fato de que os medicamentos se tornam a testemunha fiável. “O medicamento se torna pela força das coisas sua própria referência: a doença é o que esse medicamento alivia[5]”. O medicamento interpreta então um duplo papel. Ele é ao mesmo tempo agente terapêutico e testemunha fiável capaz de mostrar que o grupo de pacientes resiste por bons motivos.

O filósofo François Dagognet[6], cuja entrevista apaixonante poderá ser encontrada em seu dossiê, é o primeiro a dar importância aos ensaios clínicos na reorganização total da medicina. “estes ensaios reinventaram parcelas inteiras da medicina, de seus saberes, de seus conceitos, de suas regras morais e de sua prática[7]”. A prova dos estudos clínicos é a prova na qual se elaboram e se precisam, as vezes e ao mesmo tempo, a noção de diagnóstico e o medicamento eficaz sobre o transtorno em via de definição. Com o DSM, assistimos à implementação de uma pragmática constituída de um conjunto de comportamentos localizáveis e mensuráveis, tendo em comum permitir que se formem grupos de pacientes para os ensaios clínicos, independentemente do conteúdo de sua experiência subjetiva e de seu passado individual.

Os ensaios clínicos e a elaboração de ferramentas diagnósticas que são necessárias para tal resultaram penosamente na geração de uma nova forma de pensar os transtornos mentais e em uma mudança de paradigma. Essa mudança de paradigma repousa, de um lado, sobre o abandono da subjetividade em proveito do localizável, do quantificável, do comparável entre um paciente e outro e, de outro lado, sobre a definição do normal e do patológico a partir de um consenso de especialistas.

Mais uma vez, transtornos psiquiátricos surgem dessa maneira no mundo. TOC, distimia, síndrome de hiperatividade, etc., foram tão multiplicados na população quanto os medicamentos propostos para esses transtornos aumentaram. Diversos artigos que retomam todos esses pontos de maneira precisa e documentada podem ser encontrados nesse dossiê. Quais são as conseqüências dessa mudança de paradigma?

A deriva do “para todos” e o sonho biológico 

Os efeitos do “para todos” são múltiplos. Nós nos deteremos em alguns. O primeiro permite liberar o psiquiatra moderno da angústia da relação médico-doente. A erradicação de toda palavra, a impossibilidade do estabelecimento de toda transferência, o manejo do preenchimento de casas, o uso do exame técnico complementar que tem atualmente os exames de imagem cerebral como modelo e o recurso ao medicamento de forma massiva não dão nenhum acesso ao sujeito. O fracasso terapêutico, incluindo suas versões mais dramáticas, sendo ele mesmo reabsorvido nas estatísticas, não contribui em nada ao despertar pela angústia.

O “para todos” do medicamento, do assinalamento de casas e o caso a caso da clínica reenviam a estatutos distintos do saber. Jean-Claude Milner distinguia em Le juif de savoir o saber absoluto de um saber aplicado. Não poderíamos considerar a angústia do praticante como conseqüência de um saber aplicado? O que eu posso saber de você me faz simplesmente me remeter ao que eu posso saber de mim. O saber da segunda pessoa não cessa de abrir à primeira pessoa.

 

O saber absoluto da ciência, por outro lado, sob os auspícios do medicamento, é separado do objeto sabido e do sujeito que sabe. “Ao qualquer do objeto sabido, responde o qualquer do sujeito que sabe. Isso pode ser dito de diferentes maneiras: “ciência sem consciência”, “forclusão do sujeito”, neutralidade. Como o sujeito que sabe é um ser que fala, ele acabará por querer se dotar de uma língua específica que seja a língua de qualquer um[8].” No nosso campo, será a língua do assinalamento de casas, da estatística. Quanto ao medicamento moderno, produto do saber absoluto, ele sempre será o “penúltimo, outro sempre virá se comparar a ele” [9]. Essa constatação de P.Pigarre ressalta exatamente o que Max Weber escreveu a propósito do saber absoluto: “Todo “cumprimento” científico pede para ser ultrapassado e para envelhecer” [10]. J-C Milner a traz nesses termos: “O saber, lugar onde ninguém diz nada sobre nada e à ninguém. Lugar onde além disso, nada é solido[11]

Um outro efeito é o de um diagnóstico que pode ser empregado por todos. Se O DSM-III-R insistia sobre a necessidade de uma boa formação clínica especializada de seus utilizadores, este, entretanto já não tinha mais a necessidade da qualificação de psiquiatra. O DSM IV não toma mais essas precauções. O manual é de fato recomendado aos psiquiatras, médicos, psicólogos, trabalhadores sociais, enfermeiros, ergoterapeutas, terapeutas da reabilitação, conselheiros e outros profissionais da saúde e da saúde mental. Esta última categoria inclui, certamente, os gestores de saúde, autoridades políticas ou planos de saúde, que têm dessa maneira uma ferramenta de trabalho comum com os clínicos provavelmente por permitirem, entre outras coisas, um controle mais estrito da atividade médica sob uma cobertura científica.

Nos Estados Unidos, nós sabemos quanto o uso desse manual é determinante no sistema de reembolso de cuidados. A psiquiatria descritiva do DSM promete, desse modo, fazer diagnósticos sem que nenhuma formação psiquiátrica nem psicológica seja necessária. Ela torna, em outras palavras, mais realizável e menos caro a pesquisa epidemiológica permitindo a observação e a coleta de informações diagnósticas pelos entrevistadores não especializados. O DSM-IV é um manual acessível a todos e feito para todos. Os diagnósticos e as estratégias terapêuticas que dele se desdobram constituem os padrões, Standards. A APA então desenvolveu um sistema cuja ambição é a de fazer desaparecer do universal o mal estar da civilizaçao.

Por enquanto, a deriva do questionário encontra uma de suas ilustrações no programa Teen Screen que foi implementado nos Estados Unidos. Esse programa, destinado à despistagem de transtornos mentais nos adolescentes permitiu testar, em 2005, 55.000 crianças nos seus 42 Estados. O resultado do teste teria produzido 84% de falsos positivos. Isto é preocupante, visto que sabemos da obrigação dos cuidados prestados para além às crianças que apresentam certas patologias visando manter sua permanência no meio escolar.

Ao questionário “para todos” responde o medicamento “para todos”. A desregularização de sua prescrição feita por qualquer praticante vem firmar a deriva. O resultado é um superconsumo preocupante ligado as prescrições sempre mais pesadas e múltiplas.

Outro efeito do “para todos” ressalta do estabelecimento consensual por um grupo de especialistas freqüentemente ligados aos agrupamentos farmacêuticos da fronteira entre o normal e o patológico. O jornal de notícias que organizou Nathalie Jaudel para esse dossiê da Mental demonstra satisfatoriamente o problema. A Disease mongering, uma das últimas estratégias dos laboratórios farmacêuticos, tem por objetivo medicalizar a vida cotidiana e assim recuar as fronteiras do patológico. O método é simples e se centra na ambição de reduzir a psiquiatria farmacológica a uma psiquiatria biológica, talvez genética.

Esse método consiste em querer transformar em doença um transtorno menor, em tratar os fatores de riscos como sendo eles próprios as doenças, em rebaixar o limiar desencadeador do tratamento em função de fatores de riscos ou alargar os critérios de doenças existentes reconsiderando a curva de Gauss segundo a qual eles se distribuem. Todos esses elementos contribuem para o surgimento de novos segmentos da população susceptíveis de se beneficiarem de um tratamento medicamentoso.

A emergência do transtorno bipolar II, de transtornos bipolares não especificados e da ciclotimia é um exemplo. Ela fez aumentar de 0,1% a 5% a incidência de transtornos de humor na população e, pelo mesmo caminho, seu tratamento farmacológico[12]. Além disso, esse transtorno pode ser diagnosticado então desde a infância. A forte onda diagnóstica que atinge as crianças de dois anos de idade acompanhados de prescrições medicamentosas que até então eram impensáveis.

O caso dramático da pequena Rebeca Riley, falecida em dezembro de 2006 aos quatro anos de idade, está aí para testemunhar. Ele vem estremecer a opinião pública de Boston e de sua região, conhecida por excelência pelos seus serviços sociais e medicais. Essa criança sobre quem foi colocado o diagnóstico de déficit de atenção e de transtorno bipolar aos dois anos de idade, tinha um tratamento medicamentoso que associava um antipsicótico, um estabilizador de humor, e um anti-hipertensivo para acalmá-la; o “todo” prescrito segundo os standarts profissionais[13]. Notemos que a última geração de antipsicóticos, que tem também uma função de estabilizador de humor, entra na profilaxia do transtorno bipolar. Em nome do transtorno de humor, a prescrição de neurolépticos é, portanto, up to date.

Depois de ter apagado a psicose em nome dos transtornos de humor, de ter preconizado o “todo” antidepressivo, até os estabilizadores de humor clássicos, e constatado os limites e impasses dessas prescrições, retorna-se às prescrições de neurolépticos, medicamentos que eram destinados à psicose e apresentados daí em diante como reguladores de humor. Existem curiosas viradas, que não querem obviamente dizer seu nome. Os transtorno de humor é um dos maiores eixos da pesquisa biológica.

O caso a caso das prescrições sob transferência

O DSM-IV pretende guiar a clínica psiquiátrica no mundo pela sua característica puramente empírica. Dessa nova clínica é eliminada toda referência ao sentido, aos significantes próprios do sujeito, ao tempo, ao inconsciente, ao gozo. Porém, o sujeito pode encontrar na psicanálise uma esperança de liberação de sua própria história sintomática, que seja num processo que convoque o sentido para extrair em seguida a fórmula pela qual ele se liga ao seu parceiro sintoma, ou bem, para retomar um momento mais tardio do ensino de Lacan, reduzi-lo ao fora de sentido do aparelho sintoma articulado ao gozo.

Essa nova clínica, articulada aos medicamentos de um lado, e às TCC de outro, faz com que o sujeito se libere de toda explicação causal, de todo sentidos e afirme uma ilusão de toda força. Ele pode, portanto, desconhecer com toda legitimidade o guia escondido de sua ação no mundo, que nós chamamos de fantasma, e o real no qual ele esbarra. Isso é tão verdadeiro que na medida em que a fragmentação clínica se difunde, a passagem ao ato se torna cada vez mais enigmática. A multiplicação de passagens ao ato mortíferas de crianças ou de adolescentes nos Estados Unidos tem estremecido fortemente a opinião americana e conduzido a mobilizações de todos os tipos de saberes, que sejam sociológicos, educativos, e até jurídicos para tentar compreender o que a clínica psiquiátrica atual não pode elucidar. À unidade dramática da passagem ao ato responde a fragmentação do item clínico, um não tendo mais relação com outro.

 

Devemos concluir que a psicanálise se opõe aos medicamentos? Nada é mais falso. Os numerosos casos clínicos expostos nesse dossiê e a mesa redonda referente às prescrições de psicotrópicos em crianças são testemunhas. A psicanálise não se opõe à prescrição como tal. Se esse fosse o caso, seria uma posição de princípio arcaico absurdo, até perigosos clinicamente. A psicanálise se opõe ao “para todos” do sandart da prescrição sustentada por uma clínica do item.

 

Esses casos clínicos demonstram com uma grande precisão a relação ética do psicanalista quanto à prescrição. Prescrição que diz respeito somente aos sujeitos no caso a caso. O que quer dizer uma relação ética? É levar em consideração o real, o gozo ao qual cada sujeito se vê confrontado, medir o insuportável. E saber os limites dos poderes da palavra e da transferência, ter em cada caso uma idéia precisa da direção da cura. É saber que o poder contingente do medicamento pode ser um elemento essencial do dispositivo da l’apparole para o sujeito psicótico, o realienando no lugar do Outro. Auxiliar de l’apparole, o medicamento pode fazer então do psicanalista um parceiro que por sorte pode responder.[14] Não é desconhecer as dimensões libidinais que podem revestir o objeto medicamento: dependência e aumento da dose em um automaton de repetição, mais de vida, obnubilação, gozo próprio a cada um em uma bricolagem de posologias e de terapêuticas. É também saber discernir, na demanda de medicamentos, a dimensão real, imaginária ou simbólica do objeto que é demandado, compreender os efeitos de significações que ele pode revestir. Como nota Eric Laurent, Lacan lembra ao médico, em sua conferência “Psicanálise e medicina”[15], seu lugar ético que é o de se situar a partir do desejo que se escuta sob a “demanda”.

“Esta dimensão ética que acompanha necessariamente o medicamento não é redutível às normas de boas práticas”.[16] Esta perspectiva implica em respostas variáveis: prescrição contínua ou transitória, recusa em ceder à demanda de prescrição, redução, modificação, até mesmo o encerramento da terapêutica medicamentosa. Certamente o psicanalista não é o prescriptor, mas ele é aquele cuja responsabilidade clínica e ética é a de tomar posição na oportunidade do recurso ao medicamento, sabendo que a prescrição não cura mas “ permite trabalhar com pacientes decidido” para retomar a expressão de Jacques-Alain Miller[17].

Esses casos, em suas diversidades, testemunham também uma renovação e um alargamento da clínica à qual se confrontam os psicanalistas e os praticantes orientados pela psicanálise. A psicose está freqüentemente presente nas sessões sob a máscara de sintomas já etiquetados pelo DSM- TOC, anorexia, depressão…- e nessas circunstâncias medicada. A incidência da estrutura é evidente na direção da cura, mas ela também convoca o analista à oportunidade de uma terapêutica medicamentosa.

Para concluir, o medicamento, um dos significantes mestres da civilização atual inscrito no discurso do Outro, se revela, como substância, um modo de tratamento do gozo do corpo. Dessa forma, ele diz respeito ao psicanalista pelos seus efeitos sobre o sujeito.

Palavras Chaves: DSM – ensaio clínico- desespecialização- “para todos”.

 

[1]           Remetemo-nos aqui à obra publicada sob a direção d’A. Ehrenberg e A. Lovell, La maladie mentale en mutation , Odile Jacob, Paris, 2001.

[2]           D.J. kupfer, M. First, D. Regier, A research Agenda for DSM-V, Associação de Psiquiatria Americana, Washington, 2005.

[3]           P.Pignarre, Le grand secret de líndustrie pharmaceutique , La découverte, Paris, 2004,p.63.

 

[4]           P. Pignarre, Comment la dépression est devenue une épidémie, Hachette Littérature, 2001, p.67.

[5]           P. Pignarre, Le grand secret…op.cit., p.65.

[6]           F. Dagognet, La raison et le remède, PUF, Paris, 1964.

[7]           P. Pignarre, op.cit.,p.76.

[8]           J.-C. Milner, Le juif de savoir, Grasset, 2006,p. 64-65.

[9]           P. Pignarre, op cit, p.52

[10]          M. Weber, citado por J.-C. Milner, op. cit., p.119.

[11]          J.-C. Milner, op. cit., p.64-65

[12]          D. Healy, The latest mania: selling bipolar disorder, Plos Medicine, Abril 2006, volume 3, edição 4, p.185.

[13]          B. Carey, “Debate over children and psichiatric drugs”, New York Times, 15 de fevereiro de 2007.

[14]          E. Laurent, “Comment avaler la pilule”, Ornicar? 50, Revista do Campo Freudiano, Seuil, Paris, 2003, p.61 à 73. Esse artigo é o relatorio sobre o medicamento apresentado pelo seu autor no Congresso da AMP em Buenos Aires em 2000.

[15]          J. Lacan, “Psychanalyse et Médicine”,1966, inédito.

[16]          E. Laurent, ibid.

[17]          Entrevista de J.A. Miller por M.E.Gilio,”Rapport sur le medicament”, Documentos preparatórios à Conversação das Sessões Clinicas, Paris, 2 de junho de 2000, p.51.