Veridiana Marucio

Membro EBP/AMP

 

Que ele (o analista) conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas. (LACAN, 1998, p. 322).

 

 

Essa expressão, título desta mesa, foi a resposta dada por Jacques-Allain Miller na livraria Mollat em Bordeaux[1] durante sua apresentação “Lacan Redivivus” à última questão da conversação. Quando lhe foi perguntado sobre qual seria a aposta da psicanálise quanto ao risco mortal do deslizamento contemporâneo em direção ao cogito americano – do “eu sou o que digo”,  do american way of life generalizado, do mundo netflixizado e wokista, ele responde que o melhor obstáculo a esse positivismo é um certo Real, ao que Lacan chamou de farpa na carne em seu texto  A Juventude de Gide. [2]

 

Essa farpa, também traduzida como “espinho na carne”, é primeiramente uma referência à Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios: e, para que me não exaltasse pelas excelências das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de não me exaltar[3].

 

Philippe Hellebois[4], em um texto/bússola para as 52 Jornadas da ECF, diz que o verbo “exaltar” que encontramos no versículo acima refere-se a uma experiência aparentemente mística de São Paulo: arrebatado ao paraíso, teria ouvido palavras inefáveis ​​que não são permitidas ao homem dizê-las. Foi para evitar o orgulho que lhe foi dado esse espinho/farpa na carne, que consistiria em ser esbofeteado – ou espancado por um mensageiro de Satanás, o anjo caído de todas as tentações. Chamado de volta à sua fraqueza por seu corpo, São Paulo considera que essa é sua verdadeira força.

 

Para Hellebois, a oposição entre o significante e o corpo nesse versículo é clara: o primeiro, tanto pode elevar quanto enganar, enquanto o segundo conduz mais ao real; o poder de um é ilusório; o de outro é paradoxal, pois se baseia na fraqueza, na dor e também no prazer do corpo.

 

Se escutar hoje em dia isso que eu digo que sou se torna cada vez mais popular, por outro lado a interpretação dessa fala não parece ter nenhum espaço. Sem a interpretação, a ideologia é a da palavra que visa fazer o bem e a consequência é a negação do inconsciente.

 

Nesse contexto, pode a Psicanálise ainda ter um lugar? Esse Real, expressado por Miller como “a farpa na carne”, não seria a aposta para aqueles que não creem no inconsciente e o rechaçam, mas também para aqueles que creem?

 

 

Os que não creem no inconsciente

 

A partir de uma intervenção de Éric Laurent[5] em “Question d’École” de 2021, podemos aproximar o tema das 52 jornadas da ECF – Eu sou o que eu digo – negação do inconsciente, ao nosso tema – A verdade e o gozo que não mente. Para ele, esse “eu sou o que digo que sou” tem equivalência à verdade: é a verdade sobre a verdade. Essa equivalência entre o dito e a verdade conduz o sujeito a um naufrágio nessas declarações delirantes sobre seu eu.

 

Consideramos retomar aqui o que Marie-Hélène Brousse trabalhou em seu seminário Identidades Políticas[6], de 2015. Nessa ocasião, ela trabalhava esse fenômeno contemporâneo das identidades não mais determinadas pelo A, a partir da Nota sobre o Pai[7] de Lacan. Evocando a evaporação do Nome-do-Pai, ela propõe a substituição da ordem hierárquica e metafórica pelos S1s sozinhos, não mais metaforizáveis, uns ao lado dos outros e em relação de vizinhança.

 

Brousse propõe que os auxiliares dessa nova vontade subjetiva, retomando esse termo do Discurso de Louvain[8] de Lacan, do Eu sou em substituição ao Você é, seriam as cirurgias, os artifícios e as conversões. Isso resultaria em conjuntos muito frágeis e inconsistentes e em um consequente remanejando do laço social. Esse Eu sou voluntário mobilizaria, então, a dimensão da conversão: mudar de identidade se daria por conversão. Ela adverte que iríamos provavelmente assistir a conversões múltiplas, o que de fato aconteceu e acontece ainda, mas não é o que predomina nessa questão.

 

O positivismo contemporâneo constitui-se exclusivamente em um enunciado performativo através do qual uma pessoa, pensando saber o que ela é, o diz, e dizendo, pensa que se uniu ao seu ser, sem necessariamente passar por nenhuma cirurgia ou se apoiar em nenhum artifício. Essa declaração implicaria uma espécie de coming out[9]. Nesse ponto, a questão da verdade se localiza não como um lugar vazio e exterior ao discurso, mas no próprio dito. Sou vítima, sou preto, sou trans, sou mulher… sem a necessidade de nenhuma correspondência concreta, mas sim a existência do outro para ser reconhecido. Esse fenômeno comunitário sustenta-se nesse reconhecimento horizontal, em que o ego joga sua partida sem a necessidade de auxílio ou intervenções no corpo. Basta somente um traço imaginário para se deduzir daí uma fraternidade.

 

Nós, psicanalistas, sabemos desde Freud que é a distância entre o se diz e o que se quer dizer que dá lugar à interpretação. Essa distância nesse cogito é ignorada, anulada e erradica o furo do simbólico necessário à produção do S barrado. O cogito – eu sou o que eu digo, convoca uma espécie de testemunho exibicionista que vem apagar a evanescência estrutural do sujeito da linguagem. Segundo Christiane Alberti[10], “na medida em que o mais além do dito, que remete ao inconsciente, cai, o dito não remete ao dizer, mas se reduz ao dito”.

 

É preciso deixar vazio o lugar da verdade”, diz Laurent[11]. Ela deve permanecer escondida e toda tentativa de mostrá-la, de dizê-la toda, nos conduz a dizer mentiras mais ou menos assustadoras. A recusa da passagem pelo saber do sinthome para visar diretamente a verdade sobre a verdade tem essa face:  a do sujeito que recusa a deriva do ics, aquele que se instala pela palavra no lugar do falso sobre o verdadeiro. C’est le bouchon, le fake absolu [12]

 

Lacan adverte aos psicanalistas que tenderiam a ocupar o lugar da verdade sem ter passado pelo saber: “com a verdade, não há relação amorosa possível, nem de casamento, nem de união livre. Ela não suporta nada disso. “ (LACAN, 1970/2003, p. 442).

 

Se é possível ignorar ou mesmo apagar o texto do inconsciente, não se pode fazer o mesmo com o gozo ao qual o inconsciente responde. Segundo Christiane Alberti[13], por se alojar no corpo, e não na memória, uma farpa não pode ser esquecida, pois não deixará de atormentar o ser falante. Em outras palavras, nossos positivistas de hoje sempre podem brincar de apagar o inconsciente, mas não vão conseguir apagar esse algo que não anda, que claudica do lado do gozo.

 

Os que creem no inconsciente  

 

Não basta acreditar no inconsciente para se concluir uma análise. É preciso saber servir-se dessa “farpa na carne”. Encontramos uma referência de Hélène Bonnaud[14] com relação ao seu percurso analítico que, ao nosso ver, elucida a discussão: o real, em minha própria análise, quase quis acreditar que poderia reabsorvê-lo, girando em torno de meu gozo e fixando sua modalidade. Por muito tempo, acreditei que o gozo poderia ser resolvido no simbólico. Admitir que a operação analítica tem um resto não é tão simples quando se quer acreditar no inconsciente.

 

Bonnaud acrescenta que é preciso haver uma renúncia do amor pela fala, tal como São Paulo ao êxtase enganoso com o qual se depara: afrontar-se ao Real significa aventurar-se nas arestas do que está escrito sem que o sujeito queira, o que é difícil de suportar.

 

Ao longo de um percurso analítico, os lapsus, os esquecimentos, os sonhos, os atos falhos nos introduzem a essa zona do reprimido, o que Miller chamou de inconsciente transferencial. Se isso leva tempo, é o tempo necessário para encontrar a causa do sintoma, o tempo necessário para admiti-lo e ordená-lo pois, contrariamente a essas formações do inconsciente, o sintoma se caracteriza por sua permanência. Ele se repete e faz sofrer.

 

Enquanto somos tomados pelo sentido e pelo desejo de saber, permanecemos nessa lógica significante. Freud baseou sua exploração do inconsciente a partir do sintoma abordado pelos modos da fala. Se ele pode se perguntar se o inconsciente não era imaginário e considerar que as pulsões eram ficções, ele jamais questionou o caráter certo do sintoma. Isso o colocou no registro do real, do que insiste e deixa restos.

 

Jacques-Alain Miller sublinha em seu seminário “O Ser e o Um”[15] que as análises devem ser conduzidas além dessa lógica significante, ou seja, além da travessia da fantasia e em direção ao inconsciente real.  Uma vez esgotado as voltas dos ditos, permanece o osso que não se absorve e que volta sempre ao mesmo lugar  ̶  a farpa na carne, puro gozo daquilo que não muda.

 

Quando Miller propõe separar o ser e a existência  ̶  que ele correlaciona o ser ao lado do sentido e a existência ao lado da escrita,  parece-nos que essa separação vale como uma não relação entre os dois: o sentido reenvia sempre a um traço, enquanto que o Um da existência é um efeito de escrita e não de significação.  Se há uma lógica entre os dois, ela é sempre contingente.

 

Marcus André Vieira[16], em Lições do Passe, utiliza-se de dois testemunhos de AE e nos diz que, no ponto em que se constrói o sinthoma, há um certo sossego do inconsciente que produz um espaço de respiração na cena, repetidamente lembrada durante a análise. É nesse ponto que se realiza essa passagem do gozo da fantasia ao gozo opaco ao sentido e que não mente.

 

É na materialidade e no equívoco que o Inconsciente toca o Real. Segundo Brousse, não há outro acesso ao Real que não seja uma análise

[1] Apresentação de Ornicar? Lacan Redivivus na livraria Mollat, ACF em Aquitaine, 5/02/ 2022 acessado em 22/10/2022 publicado em La Cause du Desir, ainda não traduzido.

[2] Lacan, J. « A Juventude de Gide», Escritos, Paris, Seuil, 1966, p. 757

[3] https://www.biblegateway.com/passage/?search=2%20Cor%C3%ADntios%2012&version=ARC

[4] Hellebois, P. A Farpa na Carne In https://journees.causefreudienne.org/lecharde-dans-la-chair// acessado em 23/10/2022

« Deuxième lettre aux Corinthiens », Chap. 12, Verset 7, La Bible, traduction André Chouraqui, Paris, Desclée de Brouwer, 1989. Merci à P.-M. Pochou, participant de la Section clinique de Bruxelles, pour ses précieux commentaires.

[5] Laurent É., « Parler, et dire le faux sur le vrai », Hebdo-Blog, n°227, posté le 31 janvier 2021.

[6] Radio Lacan

[7]Lacan, J.  Nota sobre o pai. Opção 71

[8] Lacan, J. (1972/2017) Conférence de Louvain,opcao x

[9] Dominique Corpelet

https://journees.causefreudienne.org/dico-et-impudeur/

[10]Alberti,C. Liberdade de expressão: A Verdade é amável? In https://fapol.org/pt/portfolio-items/liberdade-de-expressao-a-verdade-e-amavel/ consultado em 23/10/2022

[11]

[12] Laurent,E.

[13]

[14]Bonnaud, H. Atividade preparatória ao Congresso da AMP «Um Real para o século XXI» In   https://www.psychanalysenormandie.fr/IMG/pdf/ape_riodique_3.pdf?277/418981d473b24a5a00ef0ba0e369198ae0be6856 consultado em 23/10/2022

[15] Miller

[16] https://omalentendidodocorpo.wordpress.com/tag/licoes-do-passe/

[17]Brousse, M-H.Du bom usage du deni https://journees.causefreudienne.org/du-bon-usage-du-deni/