Essa publicidade encontrada nas redes sociais mostra como está difícil de nos arranjarmos com o nosso corpo hoje em dia. Já que não podemos nos libertar do corpo que temos, pelo menos podemos fazer uma terapia para nos libertarmos da pressão social de buscar o corpo perfeito. Venha para a terapia você também, não fique de fora, e liberte-se do que você pensa que o outro pensa sobre seu corpo.

Enquanto isso, o que vemos na nossa clínica psicanalítica são casos extremos dessa dificuldade: dores intensas, anorexia, bulimia, automutilação, cicatrizes, além de problemas no sistema digestivo, respiratório, no sono, nos intestinos, na bexiga e na sexualidade.

Nesse sentido, ao valorizar a pluralidade do corpo, a psicanálise se mostra essencial para entender esses fenômenos. Então, o que a psicanálise nos ensinou sobre o corpo?

Se falamos do corpo, é porque o temos, mesmo que em alguns casos isso seja tão insuportável a ponto de querermos nos libertar dele. Lacan insiste na dimensão do ter ligada ao corpo. Temos um corpo, não somos o corpo. Ao que isso se refere? Ao amor-próprio, à mentalidade, como consistência mental e essa é a raiz do imaginário, especifica Lacan[1]. É uma “espécie de amor primário, não pelo Outro, mas por si mesmo, um culto”, acrescenta Jacques-Alain Miller[2].

A mentalidade consiste, portanto, em adorar seu corpo, e esse é mesmo “o único relacionamento que o falasser tem com seu corpo.[3]” Miller[4] diz que a relação, cuja inexistência Lacan formulou no nível sexual, ele a reencontra no nível corporal e, de certa forma, Joyce nos serve de exemplo: existe uma relação corporal.

Essa adoração ao próprio corpo, que não passa pelo Outro do significante, é uma nova relação com o corpo. O corpo de que se trata neste último Lacan é “o corpo na medida em que ele se goza”[5].

No mesmo curso, Miller acrescenta “há a relação corporal joyciana que é distinta, pois o que está no centro não é a adoração do corpo, é a ideia de si mesmo como corpo. E parece-me que seria necessário opor aí a adoração ao próprio corpo e a ‘moisação’ do próprio corpo, se posso dizer assim. A primeira relação de adoração permanece uma relação de ter, enquanto a outra é uma relação de ser.” [6] Por isso podemos falar de uma doença da mentalidade para Joyce, com esta fórmula substitutiva: ele não tem um corpo, ele é.

Uma cena de “Retrato do Artista Quando Jovem” é comentada por Lacan para elucidar a doença da mentalidade de Joyce. Trata-se da briga que surge entre Stephen e Héron a respeito do poeta Byron. Héron e seus camaradas se jogam sobre Stephen, encurralando-o contra uma cerca de arame farpado e o espancando. Retomamos aqui essa passagem:

Enquanto ainda repetia o Confiteor em meio ao riso indulgente de seus ouvintes e enquanto as cenas daquele episódio maligno passavam ainda viva e rapidamente diante de sua mente ele se perguntava por que agora não guardava rancor (malice) contra aqueles que o haviam atormentado. Não esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles mas a lembrança daquilo não lhe despertava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido por conseguinte irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeçava pela Jone’s Road em direção a sua casa sentira que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto maduro é despojado de sua casca madura e macia. [7]

Lacan extrai desse testemunho que não se trata apenas da relação com o corpo, mas que o elo imaginário se rompe para Joyce[8]. Não há adoração ao corpo, não há mentalidade. Para ele, não há mais corpo. Lacan diz que Joyce metaforiza sua relação com seu corpo: como uma casca. Ele não tem o corpo, o que indica a ausência de amor-próprio, mas ele o é pelo processo de metaforização, que Jacques-Alain Miller chama de “moisação”.

Essa perturbação da relação com o corpo para o sujeito Joyce elucida a clinica contemporânea, e finalizo esse breve comentário com uma questão trazida por Ram Mandil em um trabalho intitulado “James Joyce e a ideia de si como corpo”[9]: Onde estaria o suporte para a idéia que alguém faz de si como corpo? De que maneira podemos distinguir as que se sustentam da imagem do corpo próprio, daquelas que buscam outras vias de sustentação?

 

[1] Lacan, J. O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2007. P.131

[2] Miller, J.-A. Peças avulsas – comentário sobre Le Sinthome. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Edições Eólia, n. 45, 2006. p.15

[3] Lacan, J. Idem. P.130

[4] Miller, J.-A. Idem. p.13

[5] Miller, J.A. El Ser y el Uno: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller [2010-2011]. p.184

[6] Miller, J.-A. Peças avulsas – comentário sobre Le Sinthome. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Edições Eólia, n. 45, 2006. P.14

[7] Joyce, J. Um retrato do artista quando jovem. São Paulo: Siciliano, 1992.p.87

[8] Lacan, J. O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2007. p.131

[9] Mandil,R. James Joyce e a ideia de si como corpo. XI Congresso Internacional da ABRALIC. 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil. In https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/RAM_MANDIL.pdf consultado em 21/07/2024