Ao longo da história da psicanálise, o caso do Homem dos Lobos forneceu inúmeros avanços teóricos por apresentar impasses e contradições, como por exemplo: o diagnóstico, a transferência e a direção do tratamento. Continuamos ainda hoje a nos favorecer com essa contribuição deixada por Freud e com a possibilidade de reinterpretação do caso a partir dos conceitos trazidos pelo ensino de Lacan.

O caminho que tentarei percorrer nessa breve elaboração será uma proposta de articular o caso com os sintomas que aparecem na atualidade. Podemos considerar uma leitura desse caso que antecipe a clínica continuísta?

Os extratos do caso trabalhado por Freud com tamanha precisão e detalhe nos permite tentar responder à questão sobre qual é a radical singularidade do Homem dos Lobos e é o que permite essa possibilidade de reinterpretação.

Do ponto de vista freudiano, sabemos que ele considera o Homem dos Lobos um caso de neurose obsessiva quando ele o toma em análise entre 1910 e 1914. Freud se esforça para trazer os elementos necessários à construção que propõe, mas sabemos também que a posição do sujeito em relação à castração permanece pra Freud insuficientemente elucidada.

Segundo Eric Laurent em uma conferência proferida em São Paulo e retomada por Simone Souto e Cristiana Pitella[1], Freud sustentava até 1915 uma clínica assentada nas classificações e é a partir da publicação desse caso que ele começará a questionar essa clínica standard. Portanto, podemos concluir com isto que o pai como função já se encontra abalado em Freud, apesar de seus esforços em fazer tudo se manter em torno deste. O Homem dos Lobos vem revelar o declínio da função do pai como ideal, do pai como estruturador da vida psíquica do sujeito.

Nessa mesma referência, Laurent aponta que Freud não encontra no caso em questão a função do pai como estruturante, nem na sua ausência, nem em sua presença. Trata-se de um outro pai, não como aquele do fundamento do complexo de Édipo, o pai simbólico, sobre o qual toda a estrutura social se constrói, mas do pai como uma presença que desestabiliza essa estrutura, como uma presença de gozo que não organiza o campo simbólico do sujeito.[2]

A confrontação precoce do Homem dos Lobos com o real em jogo na castração, com um gozo impossível a localizar, vai exigir dele soluções, como por exemplo, a fobia de lobos, que aparece como uma tentativa manca de fazer barreira a esse gozo e em seguida a neurose obsessiva. As manifestações sintomáticas recuperadas por Freud durante a infância do paciente podem ser lidas como uma demonstração de como o sujeito se arranja com o modelo de gozo herdado do pai real. Nesse sentido, os sintomas que ele manifesta são o suporte de uma identificação especialmente alienante em que se troca um gozo mortífero por um nome de gozo, a marca de uma articulação contingente entre gozo e significante.

Nos momentos de desestabilização do Homem do Lobos encontramos a cada vez um elemento comum na base de seu aparecimento. De fato, trata-se sempre de um atentado ao narcisismo, uma ameaça a integridade imaginária de seu corpo, seja do órgão fálico ou de seu nariz. Isso nos permite afirmar que existe para esse sujeito uma relação com o falo, mas que essa relação não suporta a negativação (-φ). A psicose do sujeito em questão não responde aos critérios psiquiátricos nem psicanalíticos do primeiro momento do ensino de Lacan. Não há o desencadeamento como vemos no caso de Schereber, mas sim pequenos índices a partir dos quais podemos localizar a forclusão do significante da castração e as soluções que o Homem dos Lobos encontra para lidar com isso.

Temos dois momentos do ensino de Lacan que evidenciam a polaridade entre sujeito do gozo e sujeito do significante, que consequentemente trazem questões relativas, de um lado, ao falo e a forclusão, e de outro, o que faz conexão entre RSI. Acompanhamos o enorme salto entre o nome do pai como função puramente simbólica da primeira parte do ensino e Lacan, e o pai na última parte de seu ensino.

Segundo Maleval[3], seria legítimo nos interrogarmos hoje sobre a pertinência do conceito de forclusão do Nome do Pai considerando a evolução do ensino de Lacan, sendo que a principal modificação reside no acento colocado nos anos 60 sobre a pluralização do nome do pai. Isso abre perspectivas novas com relação a riqueza de soluções encontradas por inúmeros sujeitos para fazer suplência a função paterna.

O pai de RSI se define pela transmissão de um gozo por um meio dizer. Não se trata de um pai morto, mas do vivo do pai, presente em seu modo de gozo. Essa noção do pai tem a função de enodar os três registros pela equivalência que existe entre a função do pai e a do sintoma. A função do pai seria a de transmitir ao seu filho sua versão de como se arranjou para gozar de uma mulher no lugar de objeto causa de desejo, transmitir uma marca de gozo destinada a repetir-se sintomaticamente (Lacan 1974-75).

Nesse sentido, dizer que a função do pai e a do sintoma são equivalentes implica em considerar o conceito da père-version, pois o nome do pai não é o único que permitirá localizar o gozo, mas que outros elementos produzam a mesma função repetitiva e localizada, como suplências do Nome do pai.

A suplência não é necessariamente apenas do registro da psicose, mas uma forma de expressar a inexistência da relação sexual. São diferentes modos de lidar com o real distintos da premissa universal do falo. É uma invenção singular do sujeito que opera uma pacificação do seu gozo, mas que conserva a falha a qual ela vem remediar.

Uma das queixas do Homem dos Lobos era a sensação da existência de um véu sobre o mundo, frase que ele repetiu diversas vezes e que inconscientemente marcava sua fixação anal. Se Schereber [4] se torna a mulher de Deus através de um delírio no qual tem acesso a um gozo infinito ao tornar-se mãe de uma nova humanidade, o Homem dos Lobos se torna a mulher do pai a cada “ato de fazer”, que realiza, não um gozo infinito, mas certa extração do objeto e uma relativa localização de gozo, que deve ser retomada a cada vez infinitamente. São duas versões bastante diferentes do pai, que se sustentam mesmo sem o falo, criando assim uma lógica singular da sexuação.

Essa recontextualização da psicose permite sair da lógica deficitária para sublinhar a conexão do significante e gozo, e da inconsistência do pai como garantia do A. A clínica borromeana não possui como garantia o A, abrindo-se para uma clínica continuísta, para além do Édipo.

Na tentativa de construir um sinthoma, no caso do Homem dos Lobos podemos verificar que é o imaginário que enoda os registros na fobia, na neurose obsessiva ou mesmo na paranoia. Esse grampo faz os registros permanecerem unidos e masca a forclusão. Quando essa amarração se desfaz a forclusão da castração se faz presente, como podemos notar no episódio do dedo cortado[5].

Simone Souto cita ainda Laurent[6] que afirma que essa figura inquietante do pai devorador do Homem dos Lobos é a figura da instabilidade da vida moderna. Ele continua sua elaboração dizendo que se o caso do Homem dos Lobos abala o standart é porque apresenta soluções que não se apoiam no modelo edípico, mas que nem por isso deixam de constituir para esse sujeito uma sustentação. Lacan atribui a forclusão da castração o modelo do laco social contemporâneo[7] consequência do discurso capitalista, e essa orientação nos serve como um instrumento que nos coloca diante da clínica do sintoma, do modo como cada um se vira com o gozo, ou seja, do caso único.

 

[1] SOUTO,S.PITELLA,C. in O Homem dos Lobos com Lacan. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2011

[2] Idem

[3] MALEVAL,J-C. Le concept de forclusion de Nom-du-Père, in Les Fondamentaux de la psychanalyse lacanienne, Presse Universitaire de Rennes, 2011 p.65

[4] Souto,S. Uma leitura Lacaniana do caso “Homem dos Lobos” in O Homem dos Lobos com Lacan. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2011 p 158

[5] MENARD, A. in http://www.psychanalyse67.fr/accueil/myFiles/68_405B676H1I.pdf

[6] SOUTO, S. Uma leitura Lacaniana do caso “Homem dos Lobos” in O Homem dos Lobos com Lacan. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2011, p.144

[7] Le savoir du psychanalyste, inédit, leçon du 6 janvier 1972