Veridiana Marucio – boa noite a todos! Fico feliz em podermos realizar mais um evento oferecido pela Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo, em parceria com a Fnac de Campinas e com o apoio de nossos patrocinadores.
Esse tipo de evento, debates, conversações, fora do âmbito da escola, situa-se no que chamamos de Ação Lacaniana. Trata-se de um projeto da Escola Brasileira que pretende colocar a psicanálise em conexão com a cidade e com os impasses do nosso tempo. Este é o nosso quinto encontro aqui em Campinas. O tema de hoje, as toxicomanias, justifica-se pelo impacto e repercussão que acarreta, tanto na clínica quanto na cidade.
A segregação, o rechaço da diferença, o preconceito, o racismo, as questões de gênero, a homofobia, são exemplos de como o ódio pode dar um valor de unidade a uma massa, uma ilusão de uma unidade comum, uma comunidade de gozo, haja visto a ação do Estado na Cracolândia ocorrida recentemente em SP, que foi o que nos motivou a propor um debate sobre esse tema.
A ciência e o mercado corroboram para o fortalecimento de discursos segregativos – É o discurso da ciência que propõe um universal, um para todos, uma homogeneização dos modos de gozo da civilização.
Então, frente ao descrédito do discurso político, como propor uma ação, considerando que a insegurança e as relações de violência impactam na vida dos jovens de diversos universos sociais e territórios da cidade, que considere o singular de cada um?
Deixo essa pergunta e passo então a palavra ao nosso convidado Jésus Santiago, psiquiatra e psicanalista, membro da EBP e da AMP, autor do livro A Droga do Toxicômano e fundador do Centro Mineiro de Toxicomanias. Te agradeço muito pela sua disponibilidade. A gente quer te ouvir. Convido a todos a participar do debate. A ideia é essa, que a gente possa perguntar e conversar, está certo? Então, bom debate a todos!
Jésus Santiago – Eu queria em primeiro lugar agradecer a Veridiana pela ideia e pelo convite para estar aqui com vocês.
O livro A droga do Toxicômano está em sua segunda edição. É um livro fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade Paris VIII que eu pude traduzir para o português e estimular um debate, uma conversa sobre a questão das toxicomanias, hoje uma categoria em desuso. Atualmente fala-se mais das adições e menos das toxicomanias. Esse é um ponto interessante para nossa conversa – essa mudança de nomeação do fenômeno do uso abusivo das drogas.
Minha tese de doutorado resulta de um trabalho que eu tive a ocasião de fazer durante alguns anos em um centro de tratamento de pacientes toxicômanos em Belo Horizonte. Durante muitos anos trabalhei nesse centro e lá havia não apenas o tratamento de sujeitos que manifestavam essa “patologia”, mas também um núcleo de pesquisa e de investigação. Em função disso, pude me dedicar ao trabalho propriamente universitário de discussão sobre a contribuição da psicanálise em relação às toxicomanias. É um outro campo também importante de discussão sobre o que vem a ser a contribuição da psicanálise em relação a esse fenômeno clínico.
Podemos iniciar essa conversa em um ponto que chama a atenção, que é esse aspecto de atualidade que foi toda a ação do Estado em relação aos usuários abusivos, evidentemente, de crack em São Paulo. Podemos nos perguntar se esse tipo de ação tem algum alcance, nem diria clínico, mas se ela tem algum alcance, no sentido de poder agir sobre esse fenômeno do uso abusivo das drogas. A grande contribuição da psicanálise é o de poder produzir um discurso, um enfoque, que não seja repressivo em relação às toxicomanias. Talvez possamos considerar, a partir da psicanálise, uma outra visão de como lidar com esse uso propriamente toxicomaníaco.
Uma observação importante a fazer é que nem todo uso da droga é um uso toxicomaníaco. Isso foi uma contribuição importante, de um psiquiatra e psicanalista francês já falecido que se chama Claude Olivenstein, que criou um serviço de tratamento de toxicômanos na França e que ficou muito conhecido. Ele partia desse princípio: que nós não podemos dramatizar o uso da droga, considerando que a droga é um objeto de uso corrente nas sociedades contemporâneas e que nós deveríamos diferenciar um uso propriamente patológico, toxicomaníaco, de um uso recreativo, pontual das drogas.
Essa distinção parte do princípio de que nós não deveríamos colocar o foco na abordagem das toxicomanias nas drogas. Nós deveríamos colocar o foco no sujeito. No livro, eu desenvolvo a tese de que não é a droga que faz um toxicômano, mas é o toxicômano que faz a droga.
Observamos que essa relação de aderência, esse uso desregrado da droga, ela não é homogênea. Existem modos diferenciados, modos distintos de se relacionar com a droga. Por exemplo, observamos que na adolescência é muito frequente o uso da droga e esse uso pode ser transitório. O sujeito pode fazer o uso em um determinado momento da vida e de alguma maneira a coisa se encerrar, ou ele pode continuar mantendo esse uso da droga, sem que esse uso se torne um uso propriamente toxicomaníaco. Teríamos que considerar todas as consequências do uso toxicomaníaco e a mais importante delas é quando observamos modificações na vida do sujeito, comprometimentos de uma série de aspectos da vida do sujeito.
Por exemplo, o sujeito pode começar a ter problemas na vida escolar, ele pode ter dificuldades em seu relacionamento familiar, pode começar a ter dificuldades no relacionamento ou por exemplo na sua atividade profissional ou de trabalho. Observamos, portanto, que só é possível caracterizar o uso de drogas como sendo patológico se observamos um comprometimento da inserção desse sujeito na vida social.
Porém, em determinados sujeitos, o uso de drogas não acarreta esse comprometimento. Então, essa distinção é importante, mas eu só posso faze-la se considerarmos uma visão diferente daquela que normalmente a sociedade tem do fenômeno da droga. Normalmente, a sociedade interpreta a droga como sendo um grande mal, como sendo uma espécie de flagelo da humanidade, justificando todos os tipos de ação que nós conhecemos, particularmente dos órgãos responsáveis pela ordem pública.
Essa ação repressiva que aconteceu aqui em São Paulo, no meu ponto de vista, tem pouca incidência prática, no tocante a resolver o problema na medida em que o foco da ação está totalmente centrado nessa concepção de que a droga é um flagelo da humanidade. Quer dizer, a ideia de que, na verdade, em torno da droga, haveria uma espécie de veredicto de que ela é um grande mal da sociedade.
Eu acho que a questão se torna mais complexa quando passamos a considerar que essa relação propriamente toxicomaníaca depende de um determinado sujeito. É um determinado sujeito que passa a ter uma relação de adesão a esse objeto quase que inexorável. O sujeito apresenta, portanto, uma certa fixação no uso desse objeto. É como se a vida dele não pudesse se desenvolver, se desenrolar sem o uso desse objeto e mais ainda, essa relação passa a ser uma relação desregrada. Um uso, portanto, abusivo, com consequências nocivas, certamente, para a vida desse sujeito.
Do ponto de vista da psicanálise, não entendemos que o problema é da droga, ou seja, não é a droga que faz o toxicômano, mas o toxicômano que faz a droga. Isto quer dizer que no fenômeno toxicomaníaco a questão do sujeito é fundamental. Nessa tese de que o toxicômano é quem faz a droga, o foco se centra menos no objeto droga e mais no sujeito.
A partir dessa definição da toxicomania, podemos deduzir uma série de orientações em relação à sociedade, mas também em relação ao fenômeno da droga. Por exemplo, o que uma mãe e um pai podem fazer no momento em que eles identificam no adolescente o uso da droga? Que tipo de atitude seria a atitude mais lúcida, do ponto de vista da educação, da formação desse adolescente?
Eu tendo a achar que esse ponto de vista que toma a droga como um grande mal faz com que os pais, diante de uma situação como essa, adotem uma atitude de dramatização do fenômeno. O que ao meu ver não ajuda muito. Enquanto que, se considerarmos o sujeito, podemos ter uma postura, uma reação mais adequada à situação e contribuir para que o sujeito possa fazer um movimento no sentido de evitar as consequências nocivas desse uso propriamente toxicomaníaco.
Em suma, pode ser que uma determinada atitude dos pais possa possibilitar que aquilo possa ser somente uma experiência, um uso mais recreativo, do que um uso que certamente pode trazer consequências indesejáveis.
Talvez esse seja um ponto importante dessa discussão. No meu livro, eu começo a abordar essa questão, por exemplo, levando em consideração que as drogas – substâncias que tem efeitos na vida psíquica – existem desde a mais remota antiguidade.
No entanto, a existência dessas substâncias não produziu o fenômeno da toxicomania. O fenômeno da toxicomania, o fenômeno mais massificado do uso toxicomaníaco da droga é um fenômeno que data do final do século XIX. A própria categoria de toxicomania é uma categoria recente. Não podemos dizer que esse uso, portanto, massificado das drogas, tal qual ele ocorre no mundo contemporâneo, existiu desde sempre.
Se fizermos um estudo antropológico das sociedades míticas, por exemplo, nós vamos encontrar o uso das drogas, no entanto, esse uso tinha uma certa função naquelas sociedades. Existia inclusive uma certa divisão social de quem iria ou não fazer o uso das drogas nas sociedades mais arcaicas. A partir de um determinado momento – e isso tem a ver com a emergência das sociedades capitalistas e principalmente a importância que a ciência passou a ter na vida dos homens em geral – começamos a ter o uso propriamente toxicomaníaco.
Um outro aspecto: A questão do tratamento não é uma questão simples, mas certamente complexa. O fenômeno toxicomaníaco é um fenômeno que, de alguma maneira, coloca uma espécie de desafio a todo profissional Psi. Não apenas ao psicanalista, mas também ao psiquiatra, ao médico, ao assistente social. Todos esses profissionais que de alguma maneira estão envolvidos com o tratamento dos toxicômanos lidam com uma situação de muita dificuldade. Não é simples o tratamento desses sujeitos e inclusive, se levarmos em consideração esse aspecto que se tornou importante em nossas sociedades, que é o da resolutividade, o estudo estatístico dos tratamentos bem-sucedidos, nós não vamos encontrar números muito favoráveis.
Na verdade, nos casos realmente das “toxicomanias verdadeiras”, certamente o tratamento vai apresenta uma dificuldade. Observamos, por exemplo, a recidiva. O sujeito, às vezes, obtém uma melhora, uma estabilização dos seus sintomas, mas a chance de recidiva, da recaída, é muito grande. O que fala a favor da força ou da magnitude desse sintoma.
Eu insisto na importância de distinguir o uso propriamente toxicomaníaco de um uso mais pontual. É aí que entra a história das adições, porque as adições são uma tentativa de retirar o lado patológico do uso das drogas. E ainda mais, falar de adições vem também no sentido de ampliar isso que é um aspecto importante desses sintomas, que é a compulsão. Que é a prática, vamos dizer assim, repetitiva, iterativa, do uso de um determinado objeto. O uso dessa categoria abrange também outros objetos além da droga. Então, você pode ser adicto em outras esferas da vida, por exemplo: sexo, pornografia e por aí vai.
Veridiana Marucio – As telas
Jésus Santiago – Tecnologia, videogames, a tela pode ser tomada hoje como um objeto que gera esse comportamento típico das adições que envolve exatamente essas compulsões. Bom, acho que a gente pode conversar.
Veridiana Marucio – Acho interessante isso que você traz, essa inversão: não é a droga que faz o toxicômano, mas ao contrario. A cada toxicômano a sua droga: pode ser a comida, pode ser o jogo, pode ser qualquer coisa. A gente se depara na clínica com as adições das mais particulares além dessa tendência ao uso compulsivo. No seu livro você diz também que o toxicômano não existe. É uma categoria que não existe. Sobre isso, você poderia falar alguma coisa?
Também fiquei pensando, com relação à direção do tratamento, quando nós não estamos mais na tentativa de diferenciar o uso recreativo ou menos comprometido, mas já temos um uso abusivo e desregrado, com qualquer objeto que seja. O impasse para a psicanálise, no que diz respeito ao tratamento, mas também a outros profissionais, como você citou, que exercem suas práticas em centros de tratamento como os Caps, os consultórios na rua, é muito grande! Quando temos o uso decidido do objeto ali, colocado, como sendo o único que pode garantir uma certa satisfação, a satisfação única, o que se liga a essa coisa mais imediata, que as vezes produz efeitos catastróficos para o sujeito.
Você diz isso no livro e repetiu aqui – que isso colocaria o psicanalista diante de um limite, porque para que haja um tratamento é preciso que se instaure o sujeito suposto saber, e que Lacan diz “sejam mais naturais, sejam mais descontraídos”. É preciso inovar essa prática. Como?
Jésus Santiago – Primeiro, essa história de que a toxicomania não existe. É uma ideia. Na verdade, isso mais do ponto de vista da psicanálise. Não é que o fenômeno toxicomaníaco não exista, ele existe, está aí e você tem toda a razão de dizer que para um número grande de indivíduos se torna uma prática com consequências devastadoras para a vida do sujeito.
Inclusive, por exemplo, no caso do alcoolismo. É uma das doenças mentais que mais produz óbito. A gravidade das toxicomanias é fato, é uma evidência e isso explica inclusive porque as formas de abordagem da toxicomania não estão presentes apenas na área da saúde. Hoje as instituições religiosas se ocupam do problema porque o problema denota toda a situação de mal-estar das nossas sociedades. A droga dá expressão a toda situação de impasse, de mal-estar que as sociedades contemporâneas exibem.
Do ponto de vista da não existência, isso é uma questão mais técnica dentro psicanalise, pois para a psicanálise e para a psiquiatria existem categorias diagnósticas. Temos as grandes categorias diagnósticas que envolvem a neuroses, as psicoses e as subdivisões. Dentro das neuroses, temos os quadros de fobias, de pânico, as somatizações, as histerias, as ansiedades; a neurose obsessiva, o transtorno obsessivo compulsivo; dentro das psicoses temos as esquizofrenias, as depressões melancólicas, os delírios, os quadros delirantes, a paranoia e a toxicomania não se insere em nenhuma dessas grandes categorias.
É como se para cada um desses sujeitos, pudéssemos identificar diferentes diagnósticos para além da toxicomania. Não sei se estou conseguindo ser claro. Ou seja, é toxicômano um obsessivo, é toxicômano um esquizofrênico, é toxicômano uma histérica, um fóbico, então é esse o sentido de que a toxicomania não existe, no sentido de que ela sempre está acoplada a outras manifestações, vamos dizer assim, da subjetividade. Há outros diagnósticos.
Pergunta da plateia
Carmem Silva – Se é uma compulsão, se é da ordem da compulsão e não é da ordem da patologia da neurose obsessiva, como você entende então o privilégio que vemos acontecendo das toxicomanias no último século e essa crescente proliferação das adições?
Jésus Santiago – Se ela não é propriamente um diagnóstico, isso não quer dizer que ela não seja uma forma de sintoma importante, que pode se inserir nessas diferentes estruturas subjetivas, clínicas.
Ela é um sintoma que tem uma especificidade própria, que tem muito a ver com o que a Veridiana disse antes, que é o seguinte: o sujeito é marcado por uma série de relações de objeto. Desde a infância, o sujeito, no seu desenvolvimento, vai eleger alguns objetos de satisfação. Por exemplo, o seio, a amamentação.
O seio é um objeto que está ali no início da existência de todo sujeito humano. As primeiras experiências de satisfação de um ser, de um sujeito que fala, se dará com esses objetos. Eu estou dando como exemplo aqui o seio, mas sabemos que outros objetos vão se introduzindo na vida de um sujeito. Por exemplo, para uma menina, pode surgir um tipo de objeto, uma boneca, que vai ter importância para essa menina. O que é que distingue, para a psicanálise, a infância da adolescência? O que distingue a infância do ponto de vista das suas relações objetais é o fato dela estar muito circunscrita ao circuito dos objetos parentais. Toda a afetividade de uma criança, toda a satisfação libidinal de uma criança está ligada aos objetos parentais: ao pai, a mãe, um irmão. Toda a vida psíquica e todas as formas de prazer e de satisfação da criança estão, de alguma maneira, relacionadas à presença dos objetos parentais.
O que é a adolescência? A adolescência é a saída desse circuito. A adolescência é um momento do sujeito, por exemplo, em que ele vai ter um primeiro objeto de amor, um primeiro objeto de desejo. Psicanaliticamente, a gente diz que a adolescência é um momento de construção de um parceiro sexual, de um parceiro amoroso.
O que é a toxicomania? O que é a compulsão? como você falou. A compulsão é você eleger como preferencial um determinado objeto de satisfação, como se você não pudesse levar sua vida sem aquele objeto. Aquele objeto torna-se um imperativo. Você não consegue mais fazer outras coisas, por exemplo, estudar, ter uma vida escolar. Uma vida escolar supõe que a criança possa obter satisfação no estudo. O estudo é um objeto e a educação entra como uma relação objetal. Percebe? O que acontece com essas compulsões? Como definir essas compulsões? A fixação da vida psíquica do sujeito num determinado objeto comprometendo outras relações objetais?
Observamos muitas vezes que um toxicômano, por exemplo, compromete sua vida amorosa. Ele não consegue investir a sua satisfação libidinal no parceiro amoroso, sexual. Por quê? Porque o objeto droga assumiu um lugar de imperativo e ele se vê inteiramente submetido àquele objeto.
Isso para nós hoje passa a ser um componente muito importante na subjetividade de nossa época. O homem moderno é muito submetido ao objeto e muitas vezes ele se vê fixado num determinado objeto de satisfação, o que produz o que chamamos de uma espécie de gozo autístico.
O toxicômano é um sujeito que goza a sós com aquele objeto. Ele não conseguiu estabelecer uma relação de poder investir a sua libido em outros objetos que compõe a vida de todo humano. Por exemplo, para você estudar, para você trabalhar, para você constituir família você tem que de alguma maneira gerar um investimento libidinal em objetos outros, que não seja você mesmo. Tem que haver uma espécie de saída de um componente narcísico da vida psíquica. Quando você está muito preso a sua subjetividade, você vai ter muita dificuldade de fazer as coisas que a vida exige.
Do ponto de vista do desenvolvimento mental de um ser humano, esse desenvolvimento exige de todo sujeito responder pelas exigências que a própria civilização nos faz. Qualquer pessoa é confrontada com as exigências da civilização. Por isso, para Freud não existe distinção entre o indivíduo e o social. O indivíduo para Freud está inserido numa série de exigências dadas pela própria civilização.
A civilização, do ponto de vista do desenvolvimento mental, exige que o sujeito possa se apresentar com uma determinada posição em relação à sua sexualidade. O sujeito terá que, de alguma maneira, responder. Ela exige do ponto de vista da escolaridade, do ponto de vista da relação com o saber, ela exige se esse sujeito vai ter trabalho, se ele vai ser capaz de ser responsável pela sua sobrevivência, se ele vai querer ser pai, ou se for o caso de uma mulher, ser mãe, se ele vai constituir família, se ele vai ter filhos. Na verdade, a vida psíquica está sempre submetida à uma certa pressão.
Veridiana Marucio – É o que dizem os adolescentes: “ninguém perguntou como eu estou, querem saber o que eu vou ser, o que eu vou fazer, se eu vou casar, ou se está casado já perguntam se eu vou ter filhos’. Enfim, estamos todos sempre pressionados por essas questões da civilização. Essa expectativa.
Jésus Santiago – Exatamente. Eu acho que essas novas formas de sintoma são uma tentativa de não responder às exigências que vêm do outro. A pergunta que podemos fazer é a seguinte: é possível viver sem essas exigências, sem responder à essas exigências? É o que chamaríamos de uma espécie de autismo do gozo. Não é o autismo, no sentido da categoria do autismo, tal qual conhecemos atualmente e que é uma patologia muito reconhecida. É o autismo do ponto de vista dessas formas de satisfação, formas de gozo que se obtém na relação do sujeito com ele próprio, nesse circuito fechado do sujeito com ele próprio.
Veridiana Marucio – Sabemos que não é uma coisa possível. Muitas vezes perguntamos sobre a razão do uso para o sujeito e ele vai dizer que é uma fuga. E aí a gente pergunta- fuga do quê? Fuga do que mesmo? Não é tão consistente, consciente para o sujeito.
Jésus Santiago – Sem dúvida, esse é um ponto importante. Eu acho que isso é o que define a dificuldade de tratar esses pacientes pois quem está de fora enxerga todos os problemas, todas as consequências que envolvem o uso da droga, mas para aquele sujeito, a droga é uma solução. Para aquele sujeito, ele está tendo uma atitude ou um comportamento inteiramente justificado. Essa é que é a grande dificuldade!
Para o cara que está na Cracolândia, essa que é a dificuldade! Não adianta você dizer a ele que aquilo é um mal, que aquilo é um problema, que aquilo tem consequências drásticas e devastadoras. Se fosse assim, seria tudo muito fácil. O problema é que não é assim. Para aquele sujeito, a droga é uma solução. O problema todo é como é que vamos mexer nisso aí.
Você falou dos serviços de saúde mental. Eu entendo que os serviços de saúde mental são fundamentais. Eles são importantíssimos. Muito mais importantes do que uma ação repressiva do tipo que foi feito na Cracolândia. Eu acho que seria muito mais importante investir na criação de sistemas, de instituições de tratamento que permitissem acolher o sujeito e permitir que a gente possa trabalhar mais o modo como uma toxicomania ou a droga passou a ser uma solução para aquele sujeito. Não simplesmente achar que reprimir vai resolver, porque não vai resolver.
Elimina-se a Cracolândia aqui e ela vai aparecer em outro lugar! Podemos reprimir, criminalizar a droga – é uma das orientações que a civilização contemporânea adotou para tratar as toxicomanias – a política da repressão das drogas. O problema é que se pode até retirar do mercado uma determinada droga, porém, daqui a pouco, aparecerá outra porque a questão simplesmente não é a droga e sim o sujeito. Dizendo isso, eu não quero desconhecer que nós não temos que ter uma política no nível do Estado em relação à questão do tráfico, em relação à questão da droga.
Se vocês quiserem ver produções sobre essas políticas, existe um relatório do qual Fernando Henrique participou, claramente contra a criminalização das drogas. Existem estudos sociológicos que demonstram que a criminalização é pouco eficaz e que ela não consegue eliminar o uso compulsivo das civilizações contemporâneas. Não estou querendo de forma nenhuma dizer que nós não temos que ter políticas mais gerais sobre esse tema, o problema é que que essas políticas, em minha opinião, deveriam privilegiar o tratamento, as instituições de tratamento, e isso não é feito de forma decidida.

Pergunta Plateia

Emelice Prado Bagnola

Vou dialogar com você, quando traz uma reflexão sobre o drama e a repressão, situando sua intervenção a partir da prática. Gostaria de lhe pedir um comentário também a partir dos meus últimos anos de experiência em um serviço infanto-juvenil público, cuja questão até 2009 era oferecer um espaço de tratamento para a psicose e o autismo e que em 2010 passa a olhar justamente para a adolescência e seu encontro com a droga e os embaraços com o ato infracional.
A polêmica que se instaurou foi se, no mesmo serviço, seria possível abordarmos os temas de tratamento inerente aos autismos por um lado e do outro e as manifestações sintomáticas inerentes ao tempo da adolescência no encontro com as drogas.
Um serviço que migrava da orientação de tratamento centrada no diagnóstico CID 10 para a orientação do caso a caso, apresentou como primeiro efeito, ao meu ver, um relaxamento da questão do autismo como deficiência e, do lado da adolescência, a diminuição dos meninos serem tomados como delinquentes. Foi realmente um tempo de mais coisas por escutar do que coisas por fazer.
É esse ponto que você toca, de deslocar um pouco do problema da droga para o problema que traz cada criança e cada adolescente ali. Uma brecha, me parece.
Ao mesmo tempo que no Brasil vamos comemorando, e é para comemorar, o fechamento progressivo dos leitos em hospitais psiquiátricos, vamos refundando a separação nos serviços comunitários como os CAPS. De um lado a Esquizofrenia e do outro a Depedência química.
Eu me aproximei deste ponto de tensão na clínica com os adolescentes pois os serviços da infância e juventude não seguem essa distinção e separação diagnóstica, porém, aos 18 anos, quando serão transferidos para um serviço de adultos, esse ponto retorna e nem sempre é fácil. Os signos da loucura e drogadição, na maioria das vezes, fazem vacilar a posição de cada sujeito envolvido ali.
Meu pedido de comentário é esse: como nos mantermos orientados na aposta de um sujeito do inconsciente que busca um serviço público de tratamento, quando o poder público implementa serviços tipo CAPS segundo orientações sanitárias e epidemiológicas?
Hoje pela tarde recebemos um menino de 13 anos com estatura de 7a, que chegou justamente da Cracolândia da cidade de São Paulo. O que me chamou a atenção foi que, depois que ele recebeu uma hidratação endovenosa prescrita pela pediatra, ele pediu para ir jogar queimada com os demais adolescentes no parque ao lado do CAPSij. Logo prevaleceu um impasse: parte da equipe considerava ser o melhor cuidado a oferta de repouso e de alimentação: “ele tem que comer para ganhar peso e para crescer”. Se por um lado é difícil conjugar o verbo tratar, como acolher questões dos operadores? Como construir um tempo de espera para que a questão que traz cada sujeito e cada trabalhador ali possa aparecer quando estamos neste campo de prática?
Foi neste fragmento do cotidiano que observei algo do drama e também da repressão de modo sutil, foi também pela possibilidade de receber esse menino de 13a de modo mais descontraído como disse a pouco Veridiana Marúcio e verificar desse acolhimento mais informal se um tratamento pode surgir.
Jésus Santiago – Esse ponto que você levanta é uma constatação cada vez mais presente. Por exemplo, se você estiver em um hospital psiquiátrico, a maioria das manifestações sintomáticas mais graves vêm quase sempre associadas ao uso da droga. O uso das drogas hoje se faz presente nas mais diversas manifestações sintomáticas da vida psíquica. Então, na infância e na adolescência também, pelo que você está dizendo.
Eu acho que não se trata um toxicômano grave no consultório, por exemplo. Ele pode até ser abordado em um consultório, mas o tratamento exige um leque de abordagens clínicas. Inclusive o uso de um aparelho institucional, de um recurso institucional é fundamental, é decisivo. Então eu penso que esse lado da invenção é fundamental e ele envolve toda uma problemática social. O que observamos é uma certa precariedade simbólica na grande maioria desses casos graves de toxicomania, uma precariedade de referências, por exemplo, da vida familiar desses sujeitos. Uma certa precariedade material, nutricional.
Quando você aborda repressivamente o fenômeno, você desconhece essa multiplicidade de fatores causais que envolvem o encontro do sujeito com a droga. O sujeito está ali submetido a esse uso compulsivo porque a própria sociedade não criou alternativas para esse sujeito que não seja a droga. Estou de acordo com você que do ponto de vista dos serviços, do atendimento desses sujeitos, é fundamental considerar a gama de fatores que envolvem esse encontro com a droga.
Essa observação dos oficineiros com relação à um aspecto ligado à nutrição é fundamental e ela não pode ser desconhecida. Muitas vezes fazemos uma oposição entre o aspecto assistencial e o clínico, mas no Brasil de hoje não é possível fazer essa oposição. Não há condições de se fazer um atendimento clínico se não observarmos certas carências que envolvem a precariedade do sujeito. Quer dizer, nós estamos diante de carências que são primárias e que dificultam de modo significativo abordar clinicamente o toxicômano.
A CracoLândia é um exemplo disso. Ali você está diante do que fracassou de maneira muito radical. Sujeitos que fracassaram de uma maneira muito radical e o que restou para eles foi a droga. Querer dizer que o grande problema é a droga, é reduzir e distorcer toda uma realidade.

Plateia

Sou Camila, psicóloga e estou fazendo a gestão de um Caps AD em Campinas. Queria compartilhar um pouco a partir dessa experiência que estou vivendo lá no Caps. O ponto que eu queria ouvir da sua experiência é em relação a uma sensação que eu tenho de que a questão da toxicomania vai te impossibilitando de conseguir acessar o sujeito.
Na minha pesquisa de mestrado estou tentando fazer essa discussão, construindo a ideia de que a toxicomania não é um sintoma. Ela não é uma categoria clínica, mas uma produção da ordem do discurso e que ela não está só do lado do paciente que está fazendo uso da substância, mas também de quem se relaciona com ele. Vemos, no Caps eu tenho tido várias experiências, o quanto o nosso contato com eles vai produzindo um olhar para eles também intoxicado. A nossa relação com o paciente também é intoxicada. Eu fui fazendo essa construção de que a toxicomania é da ordem desse discurso, que não é só do lugar do sujeito que está no uso das substâncias. Nesse sentido, uma das coisas que eu queria trocar um pouco mais é uma coisa que tem me feito bastante questão: a da relação da toxicomania com a paranoia, já pensando mesmo nas categorias clínicas. Tem me surpreendido o quanto, na medida que a gente vai tentando acessar de fato o sujeito que está ali buscando alguma ajuda, algum tratamento, na medida que você vai tentando acessar esse sujeito, a grande parte dos casos que a gente tem conseguido se aproximar tem demonstrado, nas supervisões, essa relação. Então queria te ouvir um pouco sobre isso.

Plateia

Olá, meu nome é Wellington, sou psicólogo também. Em relação à questão dos psicofármacos que estão tornando as pessoas cada vez mais viciadas, o que o senhor tem a falar sobre isso? Porque vemos que alguns psiquiatras estão trabalhando até com coquetéis com os pacientes. O que o senhor tem a falar sobre isso? Porque é uma forma também de viciar o paciente.
Paola Salinas – Eu fiquei pensando num ponto, a partir da pergunta inicial que você fez Jésus: é possível, para esses sujeitos, prescindirem do outro? Na medida em que eles têm um uso, como você falou, propriamente toxicômano, o outro não está mais em questão. É possível sustentar a vida assim? Se a gente tem essa perspectiva de que para esse sujeito o outro não tem importância, tanto o outro da norma, o outro da lei, o outro dos valores, o outro repressor, não tem esse mesmo lugar, essa mesma importância, se ele está muito só nessa satisfação, isso é um orientador na prática, porque você vai de uma forma ou de outra, nas oficinas, onde for, se ofertar como um outro pequeno outro, um outro semelhante, que pode provocar uma abertura. Isso me parece uma questão interessante. É possível sustentar uma vida sem esse outro e aí o que isso nos toca na prática?
Jésus Santiago – Bom. A primeira pergunta – qualquer profissional Psi que se dispõe a tratar um sujeito tem que ter acesso aos seus objetos internos. Isso quer dizer o quê? Ter acesso à intimidade da pessoa. Por isso a questão do sigilo é importante num atendimento clínico. E por quê? Porque lidamos com aspectos que envolvem a vida íntima de uma pessoa, e a vida íntima é marcada por conflitos, por traumas, por sintomas, por deficiências, por sentimentos de impotência.
A maneira como o sofrimento psíquico se manifesta envolve necessariamente esses objetos internos que compõe a intimidade da pessoa. O que acontece com o toxicômano? Não se consegue entrar nesses objetos internos porque tudo gira em torno da droga. Uma das questões técnicas fundamentais do atendimento desses pacientes é adquirir uma habilidade de deslocar o sujeito dessa ênfase na droga, porque tudo gravita em torno da droga: como obter a droga, não ter a droga, a abstinência, os efeitos da droga, o que tem de positivo, o que que não tem.
O tratamento fica limitado no que eu chamaria de uma certa relação monótona com a droga. É uma monotonia, um discurso monotemático. Toda a questão de um bom terapeuta de um toxicômano é a de como quebrar, como abrir uma brecha onde possa aparecer os verdadeiros conflitos e os verdadeiros objetos causais da vida psíquica desse sujeito.
Essa é uma grande dificuldade, mas eu não acho que ela seja impossível. Disso decorre a importância do sistema institucional, porque às vezes é fazendo uma oficina que ele vai falar de algo importante para ele. Às vezes, é no trabalho de grupo, em um conflito no nível do grupo que ele vai tocar em um aspecto importante de sua vida psíquica.
Esse ponto que você levanta envolve não somente a toxicomania, mas uma questão técnica do tratamento nessas formas de sintomas que envolvem o que eu chamei aqui de gozo autístico. Não só a toxicomania, mas as anorexias, as automutilações, que são sintomas contemporâneos que envolvem o corpo e que de alguma maneira tem a ver com o que a Paola sinalizava como sendo esses sintomas que visam um curto-circuito com o Outro.
Falarei disso no final porque tem a ver com o subtítulo do livro, que é o que eu chamo de parceria cínica. Vou tentar dizer um pouco sobre como é que eu entendo isso.
Bom, a outra coisa é a paranoia. Você observou um aspecto que me interessa muito atualmente em minha pesquisa sobre esses fenômenos, no sentido de que eu sempre considerei esses fenômenos como novas formas de sintoma. Eu continuo considerando, só que eu cada vez mais acho que o horizonte para se pensar esses fenômenos é a psicose, não a neurose.
A gente trabalha atualmente com determinadas manifestações sintomáticas que são denominadas pela psiquiatria contemporânea de transtornos de personalidade borderline. Como o próprio nome indica, são casos limítrofes. São casos de manifestações de sofrimento mental que não se enquadram bem nem em uma neurose, nem em uma psicose, não apresentam um sofrimento mental com manifestações típicas da neurose, como uma angustia, uma ansiedade, uma depressão reativa a uma determinada situação. São casos em que o sofrimento não tem muita explicação.
O sujeito não sabe falar muito bem do que ele está sofrendo. E mais do que isso, ele tende a fazer uso de certos objetos externos a vida psíquica. No caso do toxicômano é a droga, no caso da anorexia é a questão do alimento, a recusa do alimento, mas o que é importante na anorexia é a questão da imagem do corpo, como que a imagem está extremamente idealizada ali para o sujeito. O verdadeiro horror, o pânico que o sujeito tem de adquirir uma gordurinha a mais no corpo.
Esses objetos externos e a imagem corporal são fundamentais nesses casos. Ou as automutilações, as práticas de cortar o corpo, todas as práticas de modificação da imagem do corpo, o que chamamos de vigorexia hoje. Vemos que não é um conflito psíquico que está em jogo nessas formas de sintoma, mas é o uso de certos objetos externos a vida psíquica.
Um psicanalista francês contemporâneo, Jacques-Alain Miller, propõe uma outra categoria para pensar esses transtornos de personalidade borderline, que é a psicose ordinária, onde ele vai localizar alguns componentes. Como ele chama esses componentes?

Plateia

Veridiana Marucio – Externalidades
Jésus Santiago – Externalidades! A palavra tinha me fugido. Essas formas de sintomas manifestam certas externalidades, um certo uso que o sujeito pode fazer. Dei o exemplo da anorexia, da imagem corporal, da droga, da automutilação – alguma coisa que está fora do sujeito, mas que tem a função para esse sujeito de tratar, de atenuar seu sofrimento. Temos observado que essas manifestações, muitas vezes, escondem quadros mais graves de uma psicose.
Eu não acho nada estranho dizer que quando começamos a acessar o sujeito, começamos a ver coisas como, por exemplo, um sentimento persecutório, quase que delirante. Em determinados sujeitos, o uso da maconha pode produzir todo um sentimento paranoico, todo um sentimento persecutório. Esse elemento persecutório já estava ali no sujeito, não foi a droga que criou. A droga é somente um fator que desencadeia e que mobiliza esse componente, mas ele já estava lá, além disso, nem todo sujeito vai ter essa resposta persecutória, paranoica.
Isso que você observa em seus atendimentos é algo que, ao meu ver, converge para postularmos aqui que, na verdade, nesses fenômenos temos algo que se avizinha aos quadros psicóticos, quadros de desorganização psíquica que envolvem uma psicose. Uma psicose menos grave, com poucos sintomas extraordinários. Nós não vamos encontrar um delírio, uma alucinação, mas sim uma desorganização muito significativa da vida psíquica.
Considero que as práticas aditivas estão se proliferando no mundo contemporâneo sim. Eu dei o exemplo da pornografia: para determinados sujeitos, a pornografia se torna um objeto quase que vital. O sujeito começa a observar que, todo dia, ele acessa um site pornográfico. Um sujeito casado, que tem uma parceira por exemplo, percebe que a vida sexual do casal fica inteiramente comprometida pelo uso da pornografia.
O uso da pornografia é uma modalidade da vida sexual. Ela é visivelmente uma solução masturbatória em que o sujeito se satisfaz com ele próprio. Mesmo que ali tenha uma imagem, do ponto de vista do gozo sexual, a compulsão pela pornografia é uma solução masturbatória que para a psicanálise é uma solução enganosa. Lacan chega a chamar de gozo do idiota, pois o sujeito acha que se ele se satisfaz com a imagem, com a fantasia, que ele está tendo acesso ao outro, enquanto que, na verdade, ele não está tendo acesso ao outro. Ele tem essa dimensão do ponto de vista da sua vida mental interna, mas em termos concretos, ele compromete sua vida amorosa, pois a vida amorosa supõe a inclusão de um outro, de um objeto que envolve uma alteridade, uma coisa outra que ele próprio.
Observamos, na sociedade contemporânea, uma proliferação desses usos compulsivos e em alguns casos observamos o consentimento da própria sociedade, discursos que autorizam esses comportamentos compulsivos. O uso da medicação é um exemplo disso. É difícil separar o que é droga e o que é um medicamento. Por exemplo: para um determinado sujeito muito estressado, que tem uma vida muito atribulada, chegar em casa e tomar um whisky e ter um certo relaxamento é um medicamento. O álcool tem uma função anestésica para esse sujeito. Bom, o problema é ele se perguntar se essa função anestésica é sintomática ou não. Esse é o problema. Então, você tem toda razão de dizer que a linha divisória entre o que é droga e o que medicamento, se esse medicamento pode estar funcionando para um determinado sujeito como droga, eu creio que sim.
Estamos diante de situações no nosso ambiente em que determinados objetos, por mais que eles sejam consentidos pelo establishment social, funcionam como uma droga para determinados sujeito. Eu acho que você tem razão e aí eu acho que tem toda uma discussão sobre os rumos da civilização que são importantíssimos.
Eu entendo que a questão do crack seria uma boa ocasião para o cidadão de alguma maneira discutir e debater aquilo que constitui direções importantes para uma vida civilizada. Por exemplo, o uso da medicação, o uso dos sites pornográficos. Pesquisas demonstram que os maiores acessos nos computadores são os sites de relacionamento e os sites de pornografia. Em termos estatísticos, os maiores acessos se dão com relação a esse tipo de site. Temos muitas pesquisas atualmente falando sobre as novas compulsões e as velhas compulsões também presentes no mundo contemporâneo.
Eu entendo que o termo adição veio para isso. Porque se você pensar bem, quando falamos adição, adoçamos um pouco a coisa. Douramos a pílula. Quando falamos em toxicomania, afirmamos que de alguma maneira ali tem um fator patológico, vamos dizer assim. Tem alguma coisa ali que precisa ser tratada. Quando falamos adição, percebemos que de alguma maneira esse componente nocivo do fenômeno se desfaz.
Estamos diante de uma série de adições que, se pensarmos bem, interessam à acumulação capitalista, interessam ao mercado, como por exemplo o uso compulsivo de certos medicamentos.
Em relação à questão do Outro: isso envolve toda uma questão conceitual no campo da psicanalise! Não é simples de abordar a razão pela qual essas novas formas de compulsões constituem tentativas do sujeito de se desvencilhar do Outro. Temos alguns trabalhos, mais no campo da filosofia, que vão dizer que essa estratégia da vida contemporânea de tentar fazer uma economia dessas exigências que vem do Outro, que vem da civilização, seria uma estratégia cínica. Por isso que no título do livro eu uso essa expressão parceria cínica – o cinismo aí não tem a ver com a hipocrisia.
O termo cinismo na nossa sociedade passou a ser um termo que designa um certo distúrbio do caráter, alguma coisa que envolveria uma postura ou uma atitude hipócrita de um determinado sujeito. Não se trata disso. É o cinismo no sentido da escolha cínica, que surge na antiguidade, uma certa posição ética. O cínico é aquele que antes de tudo busca a felicidade, mas o modo como ele busca a felicidade não tem a ver, por exemplo, com certas éticas presentes na antiguidade. A busca da felicidade teria a ver com atingir o bem, sob as diversas formas.
O bem pode se apresentar pela via do belo, pela via do bom, pela via do justo. Ele vai dizer que os cínicos, os representantes da escola cínica, Diógenes, Laércio, por exemplo, buscam a felicidade evitando as exigências da civilização. Diógenes achava que estar submetido às exigências da civilização só traria sofrimento, por exemplo, o casamento. Ele abominava o casamento pois o casamento supõe alguém que se casa e fica submetido à uma série de demandas que a vida conjugal acarreta.
Diógenes era tão radical com relação ao casamento dizendo que ele não precisava de uma mulher. Uma das demonstrações de Diógenes era se masturbar em praça publica para provar que, para sua satisfação, não precisaria de uma parceira. Ele vivia com o mínimo possível. Tanto é que cínicus tem a ver com cão, a vida de cão, de cachorro. Ele vivia com uma túnica, ia na casa das pessoas que tinham comida, não trabalhava evidentemente. Vivia com o mínimo. Ele achava que uma vida feliz seria domesticar sua condição de homem, domesticar seu ser, para poder viver e sobreviver com o mínimo possível.
Então o que acontece? Se você pensar bem, o que é a estratégia de felicidade do cínico? Eu estou colocando aqui em termos bem gerais. O que é a estratégia da busca de felicidade do cínico? É exatamente tentar evitar essas exigências que vêm do Outro. Não responder à essas exigências que vêm do outro. Portanto, o cínico é alguém que estabelece uma espécie de curto-circuito com a própria ação da civilização sobre o sujeito, como se a civilização trabalhasse sempre pressionando o sujeito a responder.
A posição do cínico é a de introduzir uma espécie de rechaço, de recusa às exigências da civilização. Podemos dizer que o toxicômano tem algo disso, porém não em uma vertente ética. O livro do filósofo alemão Peter Sloterdijk que se chama A razão cínica é um livro onde o autor desenvolve toda essa vertente do cinismo na contemporaneidade. Ele explica o cinismo na antiguidade, como é que ele aparece e como se relaciona à uma vertente propriamente ética, uma certa saída, uma certa solução ética para a vida. Esse autor vai mostrar como que essa dimensão cínica sofre uma transformação, uma mutação na contemporaneidade e deixa de ser essa solução ética passando a uma solução no nível do gozo, no nível do corpo, do modo como o sujeito lida com a satisfação que tem sua realização no corpo. Então, a parceria cínica é nesse sentido. É a parceria com o objeto droga de tal maneira que se possa produzir um certo atalho para o que é para ele a felicidade.
Veridiana Marucio – O que não deixa de ser mais feroz: o sujeito tenta rechaçar as pressões da civilização e acaba caindo em um esquema de uma exigência maior, diretamente ligado ao corpo.
Jésus Santiago – Os próprios toxicômanos comprovam isso, dizem isso. Se a droga em um primeiro momento é a expressão do prazer, com o uso cada vez mais compulsivo, o que retorna sobre o próprio sujeito é sofrimento. Esse prazer vai se transformando em dor, em sofrimento. Então, na verdade, o que seria a parceria cínica é que ao invés da civilização, do Outro, do laço social, o sujeito passa a estabelecer um laço preferencial com o próprio corpo. O corpo passa a adotar esse lugar do Outro para esse sujeito. O corpo passa a ser a referência de satisfação e a busca de felicidade se vê inteiramente submetida à essa realização de prazer com o próprio corpo.
Pergunta da plateia
Pensando a estratégia de tratamento dos trabalhadores, não dá para ir nessa mesma via da exigência, porque pode acabar caindo no mesmo curto-circuito do qual o sujeito fugiu.
Jésus Santiago
Não sei, eu tendo a achar que em um serviço de saúde mental haverão regras, exigências e teremos que colocar o sujeito à prova. Teremos que começar a mexer nisso, a colocar formas de quebrar esse gozo autísitico. Teremos que estabelecer condições. Por exemplo, eu acho que em um serviço de saúde mental não pode ter drogas, mesmo sabendo que haverá.
Carmem Silva – É isso que você fala no seu livro, tirando de Lacan, ajuda contra?
Jésus Santiago – É, ajuda contra no sentido de que você acolhe, recebe, mas não fica submetido ao modo de gozo daquele sujeito. Você vai introduzir alguma coisa. Essa ajuda contra é o seguinte: no livro do Êxodo, na Bíblia, quando Deus constata que Adão estava muito sozinho e que precisava resolver esse sentimento de solidão do qual Adão padecia, resolve encontrar uma solução. Deus cria então, do próprio corpo de Adão, a mulher. De uma parte do corpo de Adão ele cria a mulher. Essa é a narrativa bíblica e existe toda uma discussão sobre o modo como Deus inicia a criação da mulher.
A polêmica da tradução! Eu tive a ocasião de discutir recentemente com um dos responsáveis pela tradução de uma Bíblia oficial da religião católica no Brasil que será publicada, um grande especialista nas línguas antigas que foram usadas para a escrita da Bíblia e ele nos certifica dessa dificuldade de tradução dessa passagem.
Em tese, Deus iria criar uma ajuda adequada à Adão ao criar a mulher. Existem outras traduções: existe uma de um grande estudioso da Bíblia e tradutor, Chouraqui, que é um especialista no hebraico. Ele diz que não se trata disso e que Deus iria criar uma ajuda contra. Não é uma ajuda adequada, mas ajuda contra. É interessante pensar a ajuda contra, porque para a psicanálise não é a mesma coisa ser mulher e ser mãe. A mãe é a que ajuda a criança, que está ali amparando, cuidado, assistindo à criança. Uma mulher, se ela vai fazer isso com um homem, provavelmente não vai dar muito certo. Provavelmente esse homem vai procurar outra, porque na verdade ela vai ficar muito confundida com a mãe. E a chance de a satisfação libidinal se deslocar, migrar dessa mulher para outra mulher, é grande. Do ponto de vista clínico, isso é uma advertência.
Veridiana Marucio – É uma ótima advertência.
(risos)
Jésus Santiago – Então mulheres, não ajudem muito o seu parceiro! Ajudem mas coloquem uma pitadinha ali, contra! Ajuda contra. É um pouco a posição do analista no tratamento do toxicômano. Ele não pode só ajudar. Ele tem que ir contra. Ter alguma coisa nele que constitui uma diferença do próprio modo de gozo desse sujeito. Ou seja, o analista é alguém que se supõe que ele tenha tratado seu modo de gozo, que ele pôde introduzir mudanças significativas no seu próprio modo de gozo. Isso quer dizer que quando ele acolhe um toxicômano, escuta um toxicômano, ele tem que se apresentar como alguém que se mostra distinto daquele sujeito, então alguma coisa ele vai fazer contra. Mas ele não pode ser só contra, porque se ele for só contra ele não vai estabelecer um laço transferencial. Ele tem que acolher de alguma maneira a demanda, mas tem algo nele que faz com que ele vá se opor a um certo tipo de solução que esse sujeito adotou para a vida dele.

Veridiana – Muito obrigada Jésus!

Transcrição – Rebeca Macedo Costa
Estabelecimento- Veridiana Marucio