Breve Contextualização
Toda a investigação feita por Lacan no seminário 6 – ‘O desejo e sua interpretação’ se propõe a demonstrar o uso que fazemos da noção de desejo. Seu intuito é o de nos dar as coordenadas – que para ele são sempre as mesmas – e que justamente por isso verifica-se o interesse em reconhecê-las, ao passo que se isso não é feito, poderemos nos deslizar do ponto da interpretação.
O inicio desse seminário é consagrado ao tema da análise dos sonhos para então situar o lugar preciso do desejo, se apoiando no grafo que Lacan nos apresenta e que permitirá inscrever a estrutura dos fenômenos. Assim, Lacan nos apresenta uma orientação fundamental no que se refere à articulação do sujeito na busca de seu desejo.
Estamos no tempo da primeira clínica de Lacan, que conhecemos como a época clássica de seu ensino – sob a égide do significante, onde o simbólico reina e o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a ser decifrado e interpretado segundo as próprias leis da linguagem. A regra da associação livre é o que pode liberar a enunciação analítica como o que localiza a intencionalidade do sujeito no desfile do Outro do significante. O sujeito se faz porta-voz de uma enunciação que procura os enunciados que o permita recorrer ao âmbito do simbólico. Porém, nem tudo o que sua enunciação implica cabe no dito.
O fato de o ser falante ser um ser de linguagem o faz inteiramente dependente do Outro, e conseqüentemente obrigado a passar pelo Outro (A) para a satisfação de suas necessidades. Como primeira conseqüência, ele se torna um sujeito em relação ao significante, ao mesmo tempo em que se instaura aí uma distancia entre a demanda e a necessidade, abrindo um intervalo, onde o ser se coloca a questão do desejo. Che voi? É isto que Lacan inscreve em seu grafo de dois estágios.
Essa tese de Lacan, da passagem obrigatória da necessidade pela demanda, comporta sempre uma perda. É essa dimensão de perda que motiva que o sujeito se coloque uma questão nesse intervalo mesmo entre a demanda e a necessidade sobre o quê isso significa. Isso que é perdido e que Lacan demonstra ao longo do seminário é a perda de algo da vida ou de algo vital, a libra de carne.
A partir do seminário V a possibilidade de reconhecimento do desejo já havia sido modificada por Lacan e por isso não podemos dizer que o quê ele trabalha neste seminário se reduza a lógica do significante. É um seminário onde podemos considerar uma primeira virada no ensino de Lacan. Ele inicia sua investigação colocando questões que tem a ver com a lógica do significante, porém termina cada vez mais cernindo o objeto no transcorrer do seminário.
O objeto a neste início é abordado como o outro imaginário que permite ao fantasma dar ao desejo do sujeito seu nível de acomodação, de situação.Constata-se que o objeto a é desde o princípio uma ferramenta teórica e clínica que vai permitir uma abordagem renovada do fantasma e da relação de objeto. É no seminário 6 que vemos nascer esse conceito.
Lacan nos mostra, portanto, que o desejo não tem uma função biológica e que não é coordenado a um objeto natural, como nos lembra Miller, e sim a um objeto fantasmático. A posição que o sujeito toma na presença desse objeto é, nesse momento do ensino de Lacan, o alvo da experiência analítica. A cura analítica consistiria em retirar a barra do recalque, revelar o desejo tomado pelas malhas do significante que avança sempre velado, no desfile da demanda, a fim de alcançar a lógica do fantasma. O fantasma é o que se deve analisar, sem o compreender, ou seja, reencontrar a estrutura que ele revela.
Desejo e fantasma estão ligados pelo grafo por uma linha orientada do desejo ao fantasma, o que mostra que não é o fantasma que faz o desejo e sim que o desejo necessita do fantasma para se exprimir, podendo este retroagir sobre o desejo. O fantasma é tomado aqui como uma entidade imaginária- um cenário, articulado aos significantes, ou seja, como a possibilidade de conexão entre o libidinal e o simbólico e é o ponto chave, o ponto decisivo onde deve se produzir a interpretação do desejo.
Miller (2009) diz que nas exposições de Lacan, até o referido seminário, há uma maciça absorção do imaginário pelo simbólico, em um processo de extensa significantização da constituição do psiquismo. A postulação do objeto a impõe nesse momento uma subordinação do gozo à linguagem, evidentemente um gozo mortificado. O gozo pulsional que se apresenta inicialmente como imaginário vai então revelar sua consistência e articulação simbólica. Entendo que com esta oposição entre gozo e significante, Lacan faz do desejo o motor de um e de outro.
Somente na parte final do seminário, Lacan vislumbra a função de causa que cumpre o objeto a. Não quer dizer que estabeleça claramente o objeto a como causa de desejo e penso que precisamente esse é um dos impasses do seminário. O objeto permanece em alguns casos como suporte do desejo, em outros casos refém do desejo, mas sempre mantendo seu aspecto significante. Às vezes Lacan o designa como real, até mesmo como resto, como um nada ao qual ele próprio se reduz, mas a consistência significante do objeto a está sempre presente. Isso supõe um real que pode se interpretar graças às leis da fala e da linguagem, um real que pode ser tratado pela operação simbólica.
A fantasia adquire aqui a função de véu frente ao real do desamparo, como uma experiência imaginária, estruturada pelas formas narcísicas. É o suporte construído pelo sujeito na medida em que este se apaga pela entrada na linguagem. Através desse anteparo, o sujeito aspira manter o A completo, sem considerar que para que o A deseje, é preciso que algo lhe falte.
A promoção do fantasma como fundamental implicará, portanto, uma revisão da clínica edipiana e uma reelaborarão da teoria psicanalítica, especialmente ao que concerne ao fim da análise, e que tem uma correlação direta à esse fundamento. O Édipo não é a solução única do desejo, é apenas sua forma normalizada e não esgota o destino do desejo.
Na segunda parte do Seminário 6 Lacan homenageia a psicanalista inglesa Ella Sharpe pelo seu incontestável talento clínico, trabalhando exaustivamente um sonho de um de seus pacientes apresentado no capítulo V de seu livro intitulado “Analysis” , que Ella Sharpe chamou de “Analysis of a single dream”, que pode ser traduzido como A análise de um sonho único, singular, e que pelo seu caráter elucidativo foi escolhido por Lacan para demonstrar a posição desse paciente no fantasma que claramente recusa o reconhecimento da falta do A. ???
Veremos como Lacan constrói essa articulação.
O caso da tossezinha
Cinco lições desse seminário são dedicadas à análise do sonho de um paciente de Ella Sharpe. São lições extremamente preciosas para elucidar o que foi a interpretação do primeiro ensino de Lacan. Esse caráter elucidativo deve-se ao fato desse sonho se inscrever nas categorias as quais Lacan tenta nos ensinar o uso, e que a analista deixa escapar: o duplo andar do grafo.
Trata-se de um grande momento clínico onde Lacan retoma passo a passo os comentários de Ella Sharpe com relação ao sonho e as associações de seu paciente. Um trabalho minucioso com uma atenção especial aos detalhes. Lacan reinterpreta linha por linha as palavras desse paciente e os comentários da analista para elaborar a questão do desejo e da fantasia.
Reconhecendo em várias passagens o talento clínico de Ella Sharpe, ele desconstrói suas conclusões nos mostrando o que ela deixa escapar do caso Segundo Lacan, suas interpretações são determinadas pela teoria freudiana à qual ela está colada em detrimento da singularidade do sujeito, apesar de nos deixar o texto que orientam as suas pontuações.
Bem instalada em uma carreira literária, Ella Sharpe torna-se analista. O livro citado reúne lições sobre os sonhos que a analista ensinava de 1934 a 1936 no Instituto de Londres. Bastante influenciada por Melanie Klein, o que é notado por Lacan é o interesse que Ella demonstra pela estrutura da linguagem de maneira geral, colocando em destaque o caráter significante das coisas.
A interpretação e reinterpretação feita por Lacan deste sonho singular não está separado da neurose complexa do paciente e articuladas às dificuldades que ele apresenta com relação a sua sexuação e ao seu desejo.
Seu paciente é um homem brilhante, com aproximadamente 40 anos. Seu pai morre quando tinha oito anos. Não tinha sentimentos por ele, somente dizia que estava morto. Retomaremos esse ponto mais adiante.
Sofre de fobias severas. É advogado, porém parou de trabalhar, não por incapacidade, segundo Ella Sharpe, mas por medo de ter sucesso na carreira.
É um homem muito silencioso e que se controla completamente. A analista assinala que se trata de um paciente a quem nunca ouve chegar e que em certa ocasião o ouve tossir antes de entrar no consultório. Ella Sharpe capta essa tosse e a considera como um elemento novo, porém não assinala ao paciente por entender que ainda não está no momento da análise que a permita fazer comentários acerca dos acontecimentos não verbais, sem dar mais precisões.
É o próprio paciente quem indica que se deu conta de sua tossezinha e acrescenta que isso deve significar algo, desenvolvendo a partir de suas associações toda uma trama que dará conta de sua posição fantasmática.
Ella Sharpe faz uma análise pormenorizada das associações de seu paciente sobre o sentido dessa tosse. O próprio paciente entrega de bandeja – É uma mensagem! Lacan faz valer bem precisamente o que o paciente diz, ou seja, ele não vai tomá-la somente no primeiro estágio do grafo que ele nos apresenta nesse seminário. A idéia de Lacan é a de que existe uma significação, o que Ella Sharpe também refere, porém, segundo Lacan, Ella elide o fundamental, elide isso mesmo que o sujeito nos havia indicado: que existe ali uma tosse que o sujeito disse literalmente que essa tosse é uma mensagem.
Para Lacan essa é uma questão a partir do A e é aí que o paciente está mais adiantado que sua analista, como as crianças muitas vezes em relação aos pais. É uma questão que se refere ao A, como a de um sujeito que pergunta – o que ele quer? O que é esse significante do A em mim. É o próprio paciente quem, contra toda suposição da analista – ainda não chegou o momento – assinala sua abertura ao inconsciente com este “isso deve significar algo”. Lacan considera que é nesse ponto que se confirma a entrada do sujeito no discurso analítico. O sujeito se anuncia e ao mesmo tempo se interroga com a tossezinha, transformando seu ser em uma pergunta, um vazio, e é nesse momento que se constitui o sintoma como sintoma analítico.
A primeira associação que faz o paciente, após a pergunta da analista a respeito da tosse, é que ao tossir pode-se separar dois amantes que estão juntos, para dar um sinal de que serão incomodados. Ele se serviu disso quando era adolescente, aos 15 anos, enquanto seu irmão e sua namorada se beijavam. Ella Sharpe o coloca outra pergunta- Porque tossir antes de entrar aqui? Ao que ele responde que lhe parece absurdo, pois não teriam dito a ele para subir se alguém estivesse lá. E acrescenta que ele não pensa que a analista poderia se encontrar em uma situação embaraçosa. Isso é um absurdo, pois se me pediram para subir é porque não há ninguém aqui, e imediatamente se lembra de outro fantasma. Quando ele estava em um quarto onde não deveria estar, ele latia como um cachorro se alguém entrasse. Isso despistaria minha presença. Diriam: Oh, é só um cão. Lacan simplifica esse fantasma dizendo que ele nunca está lá onde ele está.
Outra lembrança lhe vem à memória – a de certa vez um cachorro ter se masturbado em sua perna e ele confessa vergonhosamente não tê-lo impedido, o que o deixaria com vergonha caso alguém aparecesse. Logo em seguida a essas associações lembra-se do sonho da noite anterior.
A analista interpreta o paciente na direção de uma rivalidade com seu pai, ameaça e medo da castração que daí decorrem. Lacan aponta que no sentido de um conflito agressivo a interpretação permanece no eixo imaginário, para ele é uma interpretação do tipo dual e o essencial não estava nesse caminho. Ele sublinha que esse “bom objeto nunca está lá onde esperamos”. O essencial para o sujeito era saber onde estava o falo. Para esse paciente, verificamos que o falo quem tem são as mulheres, o quê ficará mais claro com a análise do sonho que segue após as associações do paciente.
Ella Sharpe ouviu a tosse, porém se recusa a interpretá-la, para não destruir essa manifestação do inconsciente. Ela suprime o terceiro e só fica com a idéia de dois amantes juntos. Para Lacan o que mais importa é que são duas pessoas mais um terceiro. Fantasma sexual que concerne a analista: ora, porque ele tossiria antes de entrar no seu consultório?
Podemos pensar que a analista não considera o que se havia anunciado nesse absurdo, e que ela se detém na fantasia, e por deter sua atenção à função da tosse como a de separar os amantes que estão juntos deixa de lado esse outro aspecto, que a tosse tem a função de adverti-la de sua chegada e em um sentido que estava dado pelas associações do paciente, de preservá-la, de não encontrá-la em falta, pois para o paciente era ela que detinha o falo e não tinha nenhuma intenção de que ela o perca.
O sujeito é então tomado ente o pequeno outro que não fala (o cachorro, a’e também I(A)) e o Outro a quem ele vai falar. Ele vai desaparecer entre esses dois outros, e aí, nesse intervalo aparecerá a lembrança do sonho.
Lacan nos diz que não a posição de falo simbólico é reduzir as situações e as relações da parceira entre os pais, a rivalidade imaginaria e a suposto onipotência do paciente, o que a tira do cerne da questão. Podemos dizer que é justamente a onipotência da analista que o sujeito quer preservar através da tossezinha. Ella fala da onipotência do paciente e Lacan reposiciona que a onipotência é do discurso e nos diz que a onipotência do discurso nos indica a onipotência do A, não do paciente. Com a tosse o sujeito sustenta que o A tenha o falo. Refazer!!
Esse comentário das observações de Ella Sharpe é a ocasião para Lacan retomar o estatuto do falo como significante do desejo. “O sujeito é e não é o falo. Ele é pois é o significante sob o qual na linguagem o designa, e ele não é pois, sobre outro plano, a linguagem e justamente a lei da linguagem o desvela”.
O que podemos isolar é que algo do ser vivo e sexuado é tocado e que o sujeito se encontra na incapacidade de responder aquilo que ele é. Pelo fato do inconsciente não ter essa resposta é que o fantasma vai se encontrar ativado para tentar dar uma resposta, ou seja, vai colocar em ato na relação transferencial. De alguma forma, o inconsciente não pode responder à pergunta do paciente sobre o que significava aquela tosse, e algo acontece que ele se endereça à analista. È A colocação em ato do fantasma.
Essa é uma primeira elaboração na teoria lacaniana sobre o fantasma que será retomada no seminário XIV A lógica do fantasma. O pai, mesmo morto, não garante nada: A conclusão da interpretação desse caso antecipa o grande segredo da psicanálise… não há outro do Outro. ???