Este trabalho foi apresentado durante as X Jornadas da Seção-SP – Psicanálise e Ato, na plenária que tinha como título: O passe no horizonte de toda análise: uma questão ética. A questão de como o passe se coloca na clínica e o que queremos propor ao fazermos tal afirmação é o ponto de partida da articulação, que se desenvolve a partir de dois momentos- A clínica no passe e o passe na clínica.

Sinthoma, fantasia, passe, clínica e política.

 

O PASSE NA CLÍNICA

Veridiana Marucio

EBP/AMP

                                                 Para ser « ethically efficient » um psicanalista deve transmitir algo de sua experiência.[1].

1-Introdução

Em minhas pesquisas, deparei-me com uma mensagem de Silvia Salman enviada a Jacques-Allain Miller, assim que ela soube que havia sido nomeada como AE. Em suas palavras:

“Caro Jacques-Alain, eu lhe escrevo essas linhas pois soube há algumas horas a notícia de minha nomeação como AE. Se eu passei pelo dispositivo do passe, é porque esse trajeto já estava no horizonte de minha experiência de analisante, estou convencida. Desde minha entrada na escola, meu desejo, o interesse que despertava pela psicanálise iam nesse sentido”. [2]

Essas linhas de Silvia nos dão uma demonstração justamente da proposta desta mesa – de que o passe está no horizonte da clínica e de que uma psicanálise viva se sustenta no desejo do analista e no princípio ético de tocar o impossível desde seu início.

Como o passe se coloca na clínica e o que queremos propor ao fazermos tal afirmação? Abordar essa questão me pareceu necessário para não corrermos o risco de propormos uma teoria que corroboraria a uniformização do passe e a idealização do AE.

A meu ver, a questão de como o passe se coloca no horizonte de toda análise equivale à seguinte questão: o que esperar de uma análise quando essa se orienta para o sinthoma?

Primeiramente, farei uma inversão do título que dei a esta apresentação, para depois explorar a minha proposta para discussão.

 

 

2- A clínica no passe

Lacan propõe o passe como dispositivo para ir contra a mortificação produzida pela lista dos didatas, reorientando-o em direção à clínica. Para ele, o passe precisa manter sempre uma relação desconforme com a rotina e com o institucional para não se esgotar num ritual.  Essa reorientação toca, portanto, uma dimensão institucional fundamental, apesar de se tratar de um momento da experiência especialmente clínico.

Uma das consequências que podemos extrair dessa premissa é a de que o passe comporta sempre uma desconexão e uma reconexão[3], ou uma junção e uma disjunção entre a clínica e a política, entre o necessário e a contingência.

Esse movimento é o próprio coração do discurso analítico e é justamente isso que produz tensões, pois há sempre um mal-entendido decorrente da não correspondência exata desses campos que se tocam, mas que não se unem nunca.

Ao longo de seu ensino, Lacan introduziu várias noções para dar conta do passe como dispositivo e como momento do final da cura psicanalítica, além de estabelecer seu objetivo e sua direção.

Com as contribuições de seu último ensino, nos orientamos na prática analítica sobretudo em direção ao Um, ao singular de cada caso; portanto, no sentido oposto ao da universalização. Sendo assim, surge a pergunta: quais as implicações ao considerarmos o passe no horizonte da análise?

 

3- O passe na clínica

Sabemos que o passe concerne à conclusão de uma análise, mas proponho pensarmos que durante a análise ocorrem momentos de passe. Segundo Miller[4], com o passe, Lacan estabelece uma articulação em curto-circuito do início e do fim da análise e, ao apresentar a estrutura do fim, Lacan infere também a estrutura do fim da estrutura do começo.

Esses momentos de passe na análise podem se repetir diversas vezes antes que uma certeza se imponha, e antecedem o passe clínico propriamente dito. Já como dispositivo, é quando desse momento de passagem se faz um ensino, o que nos permite então verificar a obscuridade que ele envolve[5].

Mas como abordar esses momentos de passe na análise e diferenciá-lo do passe clínico?

O que me parece crucial nesse sentido é considerar que uma experiência de análise orientada pelo passe consiste em abrir brechas naquilo que se apresenta como o necessário, como o programado, com o que já estava lá e que produz sofrimento, desde o seu início.

É preciso um analista e seu ato para introduzir algo que faça vacilar a estabilidade daquilo que conecta o sujeito à sua realidade, ao seu mundo, àquilo que fixa o sentido ̶ e ao que chamamos de fantasia. Miller[6] define a interpretação como uma perturbação que mobiliza algo do corpo e que exige ser investida pelo analista; por exemplo, que ele forneça (…) o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar.

Essa perturbação produz uma abertura do necessário que a fantasia impunha, um deslocamento, um passo ao lado, que possibilita ao sujeito ver a maneira como ele compreende: instante de ver e momento de desarranjo do modo como se compreende[7].

A fantasia é, portanto, uma forma de conexão com a realidade, uma mediação com a realidade compartilhada, mas ela também é uma conexão com o real, sempre faltoso: um encontro com o real inscrito em um discurso.

Dito de outro modo, a fantasia se caracteriza como o necessário do objeto a aparecendo sempre no mesmo lugar, sendo que o objeto a para Lacan é aquilo que impede que a simbolização seja exaustiva, por completo, um resto de gozo. O objeto a é a cara dócil do gozo, é o gozo enquanto seu lugar é determinado, assegurado pelo significante, ali onde ele deve estar, o que implica uma domesticação do gozo, uma localização da libido[8].

Proponho pensarmos que o movimento de conexão e desconexão também pode ser abordado da seguinte maneira: entre o real como representável na fantasia e o real como irrepresentável  ̶  e que o analista en corps perturba a fantasia, modifica justamente o modo com o qual compreendemos.

Os momentos de passe promovem essa desconexão com a repetição, com o gozo representado na fantasia ̶ e é na contingência que se pode acessar algo inédito, imprevisível. A transferência, como motor e obstáculo da análise, é o que faz com que haja a reconexão ao necessário. Miller diz que a manifestação residual da análise é o analista, e que essa seria uma manifestação residual muito resistente. Sair da análise implicaria deixar para trás essa manifestação residual[9].

Esses momentos cruciais em uma análise, promovidos pelo manejo do analista, antecipam o passe clínico. É o analista quem sustenta o objeto e, quando o que estava alojado na transferência cai, não há mais a possibilidade de sentido ou de interpretação. Pode-se falar então de saída do inconsciente transferencial.[10] A queda do objeto produz a abertura da fantasia para o sintoma como aquilo que aparece sempre contingencialmente e que adquire uma certa estabilização. Não se pode mais voltar atrás para ser como antes.

Essa passagem do regime do necessário ao contingente promove uma estabilização à contingência e possibilita o saber-fazer com aquilo que estagnava. Isso pressupõe, ainda segundo Miller, uma transformação do sintoma: depois do incômodo ou da dor que gerava no sujeito, ele o brinda com a satisfação que o habitava e o animava a vida toda. Saber-fazer com o sintoma significa, na contingência, obter dele satisfação[11].

Marina Recalde[12] escreve o fim da análise como o momento de queda do objeto que funcionava como tampão, e que passa a ser causa. Extrair esse objeto faz com que o sintoma e a fantasia já não se alimentem mais e o atravessamento da fantasia coloca a descoberto o que esse objeto velava.

Compreendo que é nesse registro que se situa a experiência de gozo do sintoma, sua emergência, sempre singular a um ser falante. Lacan[13] se refere à categoria de contingente como a que promove o sintoma como a gênese do parletre, uma resposta inédita e um momento de báscula subjetiva, a cada vez inaugural. Atingido o momento de concluir, o sujeito não mais permanece sob as insígnias do Outro, que se demonstra inconsistente. Dessa passagem, temos um resto, um real não localizado, desconectado da fantasia, não mais sempre no mesmo lugar.

Para alguns, não todos, acontece de se dirigirem ao passe como procedimento, como dispositivo, e disso fazer um ensino. Marina Recalde[14], nessa mesma ocasião, fala desse ensino quando há a nomeação, lembrando que isso que é ensinado deve também ser constatado na vida cotidiana e na prática analítica. Se não se constata, há algo do que se relata de um final de análise que não se encarnou. Falta a dimensão do praticável. Para ela, é isso que cada testemunho deve ressaltar: a maneira em que se produziu esse desejo inédito, o desejo do analista, e de que maneira ele se encarna na vida e nas curas que que cada AE dirige. Nas palavras de Marcus André Vieira[15], Marina humaniza o passe.

Trago ainda duas questões: esse gozo, opaco ao sentido, gozo do sintoma, que aparece na contingência, vai aparecer sempre do mesmo jeito? E o que acontece com os restos?

Parece-me que nossa comunidade tende a pensar que os AEs se fixam em uma nomeação, como a encarnada, a decidida, a calçadeira sem medida etc.          Coloco-me a seguinte reflexão: seria possível para um AE estar à altura de um ideal tão improvável e também mortificante? Se considerarmos que isso aparece sempre do mesmo jeito, e que acontece da mesma maneira para todo AE, não recairíamos novamente no regime do necessário?

No ensino do passe, a leitura que cada AE faz de seu próprio caso nos oferece uma elucubração de saber sobre o momento de saída de suas análises, mas o nome de gozo que eventualmente eles apresentam não funcionam tal qual na fantasia, pois isso acontecerá sempre contingencialmente.

Os testemunhos nos tocam justamente por sua diversidade, pois transmitem essas nomeações singulares; sintomas cujos nomes soletrados pelos AEs são contingentes e não rígidos, não fixados  ̶  além de que não se deduzem de nada. São abertos, como Maria Cristina Giraldo nos demonstra: “um final aberto ao incurável, ao impossível e ao imprevisto está na perspectiva do sinthoma, do Um do gozo que itera e da forma singular e incomparável de arranjo com esse resto irredutível[16].

Miller[17] evocava a figura do AE intérprete. Entendo essa proposta como uma presença, que não precisa ser incessante e que não se apoia nos grandes discursos, nem em um modelo prêt-à-porter, mas sim em uma enunciação, sempre contingente. As nomeações não são as últimas palavras e não restituem nada  ̶  elas só podem circunscrever o impacto e traçar uma borda, um contorno.

E com relação aos restos, finalizo com a resposta de Marina Recalde:

E não há restos? Claro que sim. Às vezes me vejo com uma decidida vitalidade em excesso, que em alguns momentos parece esmagadora. E tenho minhas ansiedades e preocupações. Mas já não são mais filtradas pelo véu enegrecido da fantasia, que me atemorizava nessa cromatocracia disparatada que tinha armado para mim. Esse véu enegrecido, que já não me esmaga nem me revela, ficou agora como um traço de cor, entre o preto e o branco, na escolha das minhas roupas, sapatos e bolsas, que fazem a mascarada feminina que, agora eu sei, esconde um vazio que não tento mais preencher[18].

 

 

[1]BROUSSE,M.H.https://www.asreep-nls.ch/wp-content/uploads/2011/12/Bulletin-Asreep-Nls1.pdf Tradução livre. Acessado em 26 de outubro de 2021.

[2]SALMAN,S.https://psychaanalyse.com/pdf/journal_des_journees_69_ECF.pdf Acessado em 26 de outubro de 2021. Tradução livre.

 

[3] SILVA, R.F. Desconexão e reconexão depois do passe. Trabalho apresentado na mesa das VII Jornadas de SP: O amor depois do Passe. Notas pessoais.

 

[4] MILLER, J.A. Sobre o desencadeamento da saída de uma análise. In Aposta no passe. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2018.

[5] GUEGAN, P-G. «Radiophonie» questions 1 et 2. In Revista Quarto – Ação Lacaniana. Bélgica, Escola da Causa Freudiana, 2017.

[6] MILLER, J.A. Sobre o desencadeamento da saída de uma analise. In Aposta no passe. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2018.

[7] Ibidem

[8] MILLER, J-A. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires Paidós, 2012.

[9] MILLER, J.A. O avesso do Passe. In Aposta no passe. Rio de Janeiro, Contra Capa,2018

[10]Miller, J.A. (Passe bis) Sobre o desencadeamento da saída de uma analise. In Aposta no Passe. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2018

[11] Idem Ibidem

[12] RECALDE, M. Seminário do Passe. In https://youtu.be/3Mm_kNMiEDk Acessado em 31/10/2021

[13] LACAN, J. O Seminário, livro 23 – O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.

[14] Miller, J.A. O avesso do Passe. In Aposta no Passe. Rio de Janeiro, Contra Capa ,2018.  p 77

[15] Vieira, M.A. In https://youtu.be/YRACJ9szpq4 acessado em 26/10/2021

[16] Girado, M.C. Um final Aberto. In https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_004-pt.pdf Acessado em 31/10/2021

[17] Miller,J.A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In Opção Lacaniana Online nova série Ano 7, 2016. http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf Acessado em 30/10/2021

[18] Recalde, M. Seminário do Passe. In https://youtu.be/3Mm_kNMiEDk Acessado em 31/10/2021