Em sua Conferência sobre Saúde Mental e Ordem Pública, Jacques-Alain Miller[1] afirma que “a saúde mental não tem outra definição que a da ordem pública”. Nesse contexto, o trabalhador da saúde mental é um agente da ordem pública e o tratamento uma medida que visa ao seu restabelecimento.

Pode-se acrescentar nessa perspectiva os programas de reabilitação psicossocial que pretendem devolver ao indivíduo seu papel social, promovendo sua readaptação sem estigmas e de maneira autônoma ou independente, sendo que esses dois últimos significantes se constituem em fortes ideais para a saúde mental.

Como fazer? Como “recuperar indivíduos” com transtornos mentais graves e sem condições mínimas para atingirem tais ideais neuróticos e promissores da ‘felicidade’ através de empregos, moradias, amigos, lazer, medicamentos e dinheiro?

A tendência na reabilitação psicossocial é a exclusão da clínica e conseqüentemente do sintoma, produzindo uma nova forma de segregação, como nos adverte Viganó[2].

Sendo assim, podemos dizer que a psicanálise tomou para si alguns desafios. Um deles seria o de resgatar a clínica dentro desses serviços substitutivos ao manicômio regidos por ideais bem definidos, trazidos pela reforma psiquiátrica e a reabilitação psicossocial. Como responder a esse apelo que vimos surgir da saúde mental em direção à psicanálise?

Sabemos que a psicanálise trabalha visando não a eliminação do sintoma, mas certa reconciliação do sujeito com o sintoma. Em vez de tratamento do sintoma, tratamento pelo sintoma, o que se distancia da norma da saúde mental e que se realiza no caso a caso. A oposição se situa na diferença radical na direção do tratamento, diferença esta que pode ser formulada em termos éticos.

Quando falamos de uma prática institucional não estamos falando de psicanálise pura, mas sim de psicanálise aplicada. Alargamos e adaptamos os princípios da psicanálise para o contexto institucional mantendo o que Lacan trabalha em A direção do tratamento[3]: sua política, a da falta a ser para tocar o cerne do ser, a tática, a interpretação, ou melhor dizendo, o ato analítico e a estratégia, a transferência. Segundo Laurent[4], o que a psicanálise impõe à saúde mental é o poder da presença do Outro e o amor que ele induz, além do poder da interpretação. E isso faz diferença.

A partir dessas considerações iniciais apresento o caso HG. Essa mulher de mais de 50 anos faz tratamento em uma instituição de saúde mental (Serviço de Saúde Cândido Ferreira) há 18 anos. Segundo dados do prontuário HG quando chega para tratamento no antigo Hospital dia que hoje é o CAPS[5] da região leste da cidade de Campinas, já havia passado por quatro internações curtas. A queixa era do marido. Ele dizia que ela havia abandonado seus deveres de mulher… Não fazia nada em casa, não limpava, não cozinhava e não cuidava mais de seus três filhos.

Também consta que HG começou a manter relações extraconjugais, o que resultou no término do casamento. Os filhos permaneceram com o pai e ela foi morar com suas duas irmãs evangélicas. O tratamento teve bons efeitos, HG freqüentou o serviço quase que diariamente e se manteve estável por muito tempo. Após ter me distanciado dessa instituição por três anos, retorno e inicio um trabalho nos Serviços Residenciais Terapêuticos e para meu espanto HG estava morando em uma casa desse projeto, porém irreconhecível. Muito mais gorda, com os cabelos brancos e muito desorganizada. Faço uma visita à sua casa e a encontro sentada junto ao lixo fumando. Recusa-se a conversar comigo, pede para que eu saia.

Em vários momentos de visitas a casa, HG sai e vai para o quarto. Quando está sozinha nem mesmo abre a porta. Não saía do quarto nem para comer.

Nesse serviço que está inserida atualmente, ocorrem várias iniciativas para que ocorra a re-inserção das pacientes, essas vão desde a participação de atividades dos centros de convivência  aos núcleos de oficina de trabalho, que estão hoje no ápice da proposta de reabilitação psicossocial.  A proposta é devolver a autonomia, promover a inserção na comunidade, o convívio com os vizinhos, a participação em festas, o direito a auxílios financeiros, além de andar limpo e bem vestido, comer bem, escolher o que vai comer e às vezes até cozinhar, preparar seu próprio café. Ou seja, valoriza-se o querer do paciente, sendo a equipe muitas vezes, a autora deste querer.

Sem dúvida essa proposta é muito mais humana do que os antigos tratamentos. Percebemos, através dos relatos dos próprios moradores, o quanto isso pôde proporcionar novas formas de vida, e aqui me refiro não somente ao fato de terem uma casa para morar, mas ao suporte institucional oferecido que muitas vezes basta para estabilizar esses sujeitos.

No caso de HG, ela não consegue “se adaptar”, e todas as intervenções da equipe no sentido de proporcionar uma melhor adaptação pareciam piorar seu quadro. Após certas intervenções desencadeia idéias persecutórias de cunho sexual. Já fazia  mais seis meses que não saía de casa e todas as tentativas de inseri-la nas atividades se mostravam nulas.

Em reunião da equipe e a partir desses elementos, sugiro que “afrouxemos” nossas intervenções, alertando que para alguns sujeitos esse modo de cuidar muitas vezes é insuportável, muito invasivo, e que para HG deveríamos pensar em mudar a tática.

Desde o texto de Lacan, ‘A questão preliminar a todo tratamento possível da psicose’, sabemos que a transferência na psicose se dá pela vertente da erotomania, ou seja, o sujeito se coloca na posição de objeto do outro. Assim, orientada pela psicanálise, pude envolver a equipe em uma outra maneira de abordar essa paciente.

Passei um tempo sem vê-la e para meu espanto em uma visita ela me perguntou – ‘Mulher, como foi que eu vim parar aqui? Respondo que não sei e pergunto se ela não poderia me contar? Pergunta-me se eu me lembro dela, de como ela era magra e bonita. Digo que sim, e então me diz que sente muito medo de tudo, não compreende a existência dos filhos, pois é virgem pura. Não entende nada do que lhe acontece, sempre me dizendo em seguida: ‘Como é que pode? A vaidade da mulher é uma armadilha? A igreja proíbe decotes e saias curtas, mas o que é que eu posso fazer se todos os homens me desejam? ‘

Chama a mim de mulher o tempo todo, fala do seu ex-marido, da sua família, e da morte dos pais. Percebo que seus enigmas são colocados com um tom de bom humor, como se a falta de significação ou de respostas delirantes à esse respeito a fizessem vacilar em sua posição, a de objeto de gozo do Outro. Não é mais de forma desesperada que aborda essas questões.

Pede para sair de casa e me pergunta se posso acompanhá-la. Saímos para uma volta rápida, ela compra algumas coisas de “mulher” e prefere as coisas cor de rosa. Espanta-se com os preços das coisas. Digo que fazia muito tempo mesmo que ela não saia de casa.

Me pede então para acompanhá-la novamente ao centro da cidade pois precisa de roupas para a viagem que o grupo do qual faz parte na instituição vai à praia. Pergunto se está decida a ir, me responde: ‘Querem que eu vá’.

Compra várias roupas, biquíni e tinta de cabelo. Na rua sente várias dores no corpo, e me diz que ela é fogo mesmo, pois em casa não sente dor nenhuma. Pinta o cabelo, porém não veste as roupas que comprou e desiste da praia apesar de estar com as malas prontas. Disse que desistiu pois não estava sol e não queria gastar seu dinheiro indo à praia para tomar chuva.

Fala de seus sonhos, de que havia sonhado com um caixão, mas não tinha medo da morte. Sua morte já aconteceu, deixou de ser a mulher do seu marido e a mãe de seus filhos. Diz que é estuprada todas as noites e me pergunta porque isso lhe acontece. Logo mudo de assunto, aproveitando do horário do almoço que se aproximava e lhe pergunto o que vai preparar, me fala que isso também é algo que não pode mais fazer e então espera que outra moradora lhe prepare a refeição.

Em uma das últimas visitas me conta que acordou um dia com uma aliança no dedo, mas não entende como foi que isso aconteceu. Conta que se casou várias vezes, descrevendo a cena, a roupa que estava, e diz que aceitou, por insistência do noivo, sempre um homem da equipe de cuidadores. Diz que não vai tirar a aliança, pois impõe respeito, evita que seja estuprada novamente. Digo que ela encontrou uma boa saída e pergunto se tem funcionado. Responde que sim, porém não entende como que com tantos casamentos ainda se encontra sozinha. Nesse dia acordou, olhou no espelho e se achou bonita.

Enquanto que a moral é da ordem da conformidade social, a ética da psicanálise é da ordem da autenticidade do sujeito. Busca-se a partir desta orientação testemunhar uma possível invenção que organize os registros do S, I e R e que faça ponto de basta. Nessa perspectiva, Eric Laurent, durante A conversação de Arcachon[6] observa: “Toda a teoria da transferência está em jogo na segunda clínica: é preciso fazer-se de capitonê e do destinatário desses sinais mínimos. É preciso entrar na matriz do discurso pelo sinal e não pelo sentido, o que supõe decidir que existe aí uma entrada possível”.

Uma conseqüência da inserção do discurso da psicanálise nos serviços de saúde é a inversão da suposição de saber, que poderia ser formulada nos seguintes termos: o psicótico sabe o seu caminho. O que nos coloca em posição de aprendizagem em relação à clínica, em posição de sujeito suposto não saber.

No caso apresentado verificamos que existe um testemunho de uma possível construção, que pode fazer função de laço social, e que à priori não sabemos onde vai dar, mas que está orientada pela ética do sujeito e que responde ao apelo feito à psicanálise de resgatar a clínica e a dimensão do sujeito nas instituições. A saúde mental, por sua vez, cumpre seu papel, tenta se aproximar da paciente, fazer por ela, impondo um certo jeito de viver, enquanto que a psicanálise faz a diferença no saber “não saber”.

O modo de produção subjetiva se dá pela via da “trivialização”, [7] uma manobra preciosa usada pela praticante para neutralizar a ação do delírio. Essa estratégia pôde servir para esvaziar a força que tem o delírio de capturar o sujeito em sua condição de objeto, o que observamos em algumas passagens. Neste sentido, ao invés de privilegiar temas que incitem o delírio, é importante dar destaque àqueles que sejam corriqueiros, uma conversa ordinária sobre aspectos do dia-a-dia.

Nesse contexto, o caso aparece trazendo questões relevantes quanto às soluções que empreende, e que incluem a praticante, se tornando viáveis a partir do manejo clínico direcionado pelos princípios da psicanálise de orientação lacaniana fazendo a diferença.

 

* Psicóloga, Associada ao Clin-a SP e Mestre pela Universidade Paris 8.

[1] MILLER, J. A. Saúde mental e Ordem Pública. (Communication en Espagne, 1988) In:Curinga. École Brésilienne de Psychanalyse – Minas Gerais nº 13,BH, 1999.

[2] VIGANÒ, C. A construção do caso clínico em Saúde mental. (Communication au Brésil en 1997) In:Curinga – École Brésilienne de Psychanalyse – Minas Gerais nº 13, BH, 1999.

[3] LACAN,J (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[4] LAURENT, E. Há algo de novo nas psicoses. In: Curinga — École Brésilienne de Psychanalyse – Minas Gerais nº 14, BH, 2000, p.152-163.

[5] Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são instituições brasileiras que visam à substituição dos hospitais psiquiátricos – antigos hospícios ou manicômios – e de seus métodos para cuidar de psicóticos e neuróticos graves.

[6] MILLER,J.A . A conversação. In: DEFFIEUX, J.P.; LA-SAGNA, C.D. Os casos raros e inclassificáveis da clínica psicanalítica. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.

[7] MILLER,J.A. Matemas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.