Introdução

             A primeira lição do Seminário 20[1], intitulada Do Gozo, define de saída em torno do que esse seminário inteiro irá se centrar.  Esse momento do ensino de Lacan, que corresponde ao que Jacques-Allain Miller nomeou no texto “Seis paradigmas do gozo[2], de paradigma do gozo da não relação, é, ao mesmo tempo, complicado e inovador, e nos exigirá uma forma de deslocamento particular.

Gostaria de retomar o conceito de paradigma. Um paradigma é um modelo, mas é um modelo enquanto ele tem uma eficácia sobre nós, quando nos colocamos sob esse modelo. Como exemplo atual, podemos pesar na pandemia, que veio instalar um novo paradigma: o paradigma do virtual, no qual estamos e vivemos todas as suas consequências. Voltamos ao paradigma do gozo da não relação: Neste texto, Miller considera esse paradigma como um momento de virada no ensino de Lacan.

Para darmos um pouco o contexto deste seminário, temos que lembrar que 1972 foi um momento onde o debate feminista estava em plena força, uma época onde a aspiração à liberação sexual dominava e onde a questão da igualdade entre homens e mulheres davam seguimento a revolta cultural da juventude em 68, juntamente com os avanços da legislação da pílula contraceptiva.

 

Linguagem e Ser-falante

Pensei em abordar esse momento de virada a partir da seguinte pergunta: O que é que aconteceu a Lacan para que ele concebesse essa nova maneira de considerar o gozo, e como consequência, postulasse essa reformulação tão radical sobre a concepção do fim de uma análise?

Inicialmente, podemos considerar que essa nova maneira de Lacan conceber o gozo exigiu uma desconstrução importante do que havia sido construído até então em seu ensino de maneira muito precisa e lógica. Essa construção precedente foi, entretanto, necessária e o permitiu fazer essa virada. Cito Miller:

            “Não chegaremos a isso esquecendo a estrutura do sintoma do inconsciente, nem tampouco esquecendo que a segunda tópica de Freud não anula a primeira, mas se compõe com ela. Do mesmo modo, Lacan não veio para apagar Freud, mas para prolongá-lo. Os remanejamentos de seu ensino se fazem sem fissuras utilizando-se os recursos de uma topologia conceitual que garante a continuidade sem interditar a renovação”[3]

Como ponto de apoio para essa exposição, tomarei a conferencia de Daniel Roy[4] extraída da Radio Lacan. Daniel destaca uma frase da página 10 do Seminário 20 que nos introduzirá nessa nova maneira de conceptualização:  “A linguagem não é o ser falante.” O que isso quer dizer? Vou me servir do esquema que traz Miller[5].

Significa que: de um lado há a linguagem, e de outro lado há o ser falante e que, se aproximamos os dois, se fazemos eles se reencontrarem, como Lacan faz nessa frase, negativa, sua intersecção é vazia.

 

Linguagem – Código – valor de uso      Falante – gozo

            Significa que de um lado há o ser falante (que é uma coisa) e a linguagem está de outro (que é outra coisa). O ser falante se serve da linguagem e é o corpo que vai em direção ao A, que o machuca, que o traumatiza.

Como articular isso? Lacan vai então precisar as coisas.

A linguagem, Lacan a toma como o conjunto de códigos, no sentido do código jurídico, civil. O código tenta dizer algo sobre aquilo que se passa do outro lado, ou seja, tenta dizer como o homem pode gozar. Isso só e possível pois deve-se considerar de saída o fato de que o gozo está do lado do ser falante, e no fundo, temos que separar a linguagem e considerá-la como um grande sistema que tenta cernir o gozo de maneira que o usufruto seja possível.

(Usufruto -Gozar de seu bem, sem desperdiçá-lo.)

Então, agora, produzindo essa separação, Lacan afirma que o gozo está estritamente desse lado (do lado do ser falante) e não desse outro (do lado da linguagem) e desde o início! E será somente de maneira secundária que a linguagem vai intervir no campo do gozo. Nessa passagem é que Lacan define o gozo como aquilo que não serve para nada e a definição do super-ego como imperativo de gozo. A linguagem serve, mas o gozo não.

Como a linguagem intervém?

A expressão extraída do Seminário 20 e que Miller[6] retoma é que a linguagem se faz aparelho ao gozo. A linguagem é o aparelho (a ferramenta, o utensílio) que permite tentar cernir nesse campo aqui (do ser falante) algo do gozo.

Há aqui uma ruptura radical com relação ao que predominava antes na relação da estrutura da linguagem e o campo da pulsão. Por muito tempo, entre esses dois campos, havia sempre um losango, que Lacan construiu como uma relação de conjunção-disjunção, seja no fantasma ou em outras estruturas que estudamos ao longo de seu ensino. Havia essa relação circular entre significante e gozo. Miller articula isso nesse texto que trabalhamos até o paradigma 5.

O significante tinha então sempre uma relação particular com o gozo. Fomos formados assim, por isso é difícil de entrar nesse paradigma. Passamos dessa relação circular, disjunção – conjunção, a não relação, a intersecção vazia. Daniel Roy[7] nos traz isso dizendo que esse momento anterior, onde o significante aparece sempre ligado ao gozo, é difícil de abandonar, pois é um momento muito precioso na clínica e que nos serve muito. É um momento clínico onde o gozo, que estava obscuro, que não estava presente, é liberado. Em torno de um significante que se isola, podemos ver essa difração particular entre um significante e um objeto que tem a função de mais de gozo. Somos obrigados a deixar isso para passar ao paradigma seguinte.

Segundo Daniel, esse efeito – que ele chama de efeito mais de gozo, quando um significante vem no lugar de outro e libera essa carga de gozo obscuro, isso já era muito, era um momento formidável, e então ele se pergunta: porque Lacan foi buscar outra coisa?

Retomarei brevemente o que Lacan disse na ultima lição do Seminário 19, que se chama: Os corpos aprisionados pelo discurso, capítulo onde ele traz coisas que desenvolverá no Seminário 20. Ele vai dizer que de qualquer forma, isso que se libera no momento onde isolamos um significante, ou seja, isso que libera a carga de gozo, é sempre retomado pelo discurso do mestre, pelo discurso do inconsciente, vis a vis do corpo, e a relação que vai se fazer é sempre uma relação que os psicanalistas chamam de afeto.

 Entre o corpo e o discurso há algo com que os psicanalistas se deleitam, chamando-o pretensiosamente de afetos…Que seja isso que produz uma análise. Ele não ignora o encontro dos corpos, e claro que são afetados[8].

             Porém, entre essas duas coisas que vão se separar, entre o significante que se isola e o corpo, temos os afetos, que não são nada mais do que os bons sentimentos. Obrigatoriamente sempre cai nos bons sentimentos que no discurso do mestre são feitos de jurisprudência. É depreciativo com relação a psicanálise quando ele diz isso.

Lacan demonstra isso de maneira ainda mais precisa na página 221, ele diz que isso se divide de um lado entre as relações, o engate social, a tomada pelo discurso, desse lado, e é aqui que ele situa o fantasma, e do outro lado, permanece aquilo que se diz. Então temos um momento onde no fundo esse espaço que se preenchia naquele momento pelos afetos, pelos bons sentimentos, para se entrar em análise, para fazer operar o discurso analítico, tem que se esvaziar. Como?

Na pagina 222 ele diz que O analista en corp, com seu corpo, tem que instalar o objeto a no discurso no lugar do semblante, fazendo meia volta, extrair do fantasma para colocar no lugar do semblante.

Como ele faz isso? Interpretando. Nesse momento, o que quer dizer interpretar? Significa que, o analista acompanha seu analisante para fazer com que isso que se diz não seja imediatamente absorvido em um dizer precedente. Isso vai encontrar naturalmente seu lugar no fantasma, então o que fazer? Fazer com que o dizer não seja esquecido, Lacan inventa essa fórmula em o aturdito , acomoda-lo sobre o objeto dejeto, extrair do plano do fantasma  para inscreve-lo lá onde havia o significante mestre.

Da merda que o obj a lhe propõe na figura de seu analista[9].’

Então é esse momento que é o momento de báscula que opera Lacan, um momento que concerne inicialmente o psicanalista, a operação mesmo do psicanalista, o momento onde ele interpreta visando o ponto onde aquilo que se diz vale de nunca ter sido dito antes, de nunca ter sido feito objeto de um dizer e isso não acontece sem colocar do seu, tanto de um lado como de outro.

Com essa bússola, entramos, convidados por Miller, em um mundo onde as regras são bem diferentes, onde as coordenadas da experiência são bem outras, quais são elas? Duas frases que vão nos orientar: Entramos em um mundo onde primeiramente o fato do gozo é primeiro, onde não há nada antes, e onde o significante é o signo do sujeito. O significante tem assim uma dupla face: por um lado, é o que pertence ao simbólico, constrói o sujeito e sua verdade, presta-se ao laço social; por outro lado, é o que pertence ao real, pode ser considerado como o saber da repetição inconsciente, matema de gozo para um sujeito. Nesse seminário, Lacan vem então dizer que o significante é a causa de gozo.

Claro que ao falarmos sabemos que um significante representa o sujeito, mas Lacan nos faz perceber que, por outro lado, esse mesmo significante é o signo de que há o Um. Essa fórmula que ressoa desde há algum tempo. Que há o Um, o Um do gozo que está lá inicialmente. O conceito que então propõe Miller, apoiado no Lacan desse período, o da não relação, ele explica que não há relação que caia na evidência, não há senso comum, não há nada adquirido, e quando há algo que aparece adquirido, que é uma articulação, é algo que tomamos da rotina ou da tradição. Todos esses edifícios que construímos e que se constituem vem esconder essa não relação na qual finalmente somos tomados.

O Significante é o signo do sujeito, acho que é a ocasião aqui de nos debruçarmos sobre a dimensão sobre o qual se apoia Lacan para colocar o lugar original e primário do gozo, sobre o que ele se apoia? O gozo primordial situa exatamente atos de fala que não são comunicação, que não tomam apoio sobre elementos colocados numa frase ou um dicionário, a palavra antes de seu ordenamento gramatical e léxico, a lalangue é a fala disjunta da estrutura da linguagem. Lacan já se aproximava disso em radiofonia:  quando há fumaça, não há o fogo, mas sim o fumante, a fumaça é o signo do gozo do fumante.

 

Conclusão

            Encore é um seminário para uma ética contemporânea – do Outro que não existe. Miller se refere a esse seminário dizendo que é o momento onde não há mais necessidade de promover a interdição que faça pesar a norma edipiana, nem mesmo a transgressão que ela suscita, pois não há a relação sexual. Podemos tentar fazê-la existir, se inventando interdições, tentar sustentá-la, se inventando transgressões, mas o que encontramos no final é que a relação não existe.

O ser humano, por ser sexuado tende a fazer Um, a sonhar em reencontrar sua metade perdida. Se interrogando sobre esse movimento que empurra os seres humanos a se parearem, Lacan atribui isso a dependência da erótica humana a existência da linguagem. Nesse primeiro capítulo, Lacan retoma de outra forma aquilo que Freud havia atribuído a bissexualidade. No inconsciente, homens e mulheres não estão verdadeiramente estabelecidos, a não ser pela existência da própria linguagem.

É preciso passar pelos significantes para tentar fazer existir a relação sexual que não existe e para se situar na sexuação, o gozo deve ir se fazer valer no lugar do Outro. E é por isso que o fantasma é necessário para sexualizar esse gozo inútil, para fazer existir a relação que não há pela via dos semblantes. Semblantes são conectores dessa disjunção, e como são conectores dessa disjunção não há somente um, podem estar em competição com outros, existem outras maneiras de operar essa conexão, outros grampos

Miller desenvolve isso de maneira precisa para dizer que no fundo, até então, o A, nós o compreendíamos como sendo o lugar do tesouro dos significantes, e aqui esse Outro, ele diz então que não é nada disso! Eles, os significantes, não têm lugar precedente. Lacan já tinha essa intuição em 1967, que a sexualidade não era de forma alguma um funcionamento biológico, mas muito mais a maneira como meninos e meninas se comportam uns em relação aos outros. Ou seja, semblantes. O que já estava em vias de ser elaborado, nesse seminário é sistematizado. Nesse primeiro capitulo ele retoma isso no apólogo da periquita apaixonada por Picasso.

Essa pequena periquita faz existir um tipo de relação sexual. É para mostrar nesse capítulo, um primeiro aspecto do amor que Lacan nunca deixou verdadeiramente, que o amor tem sempre um fundamento narcísico. O amor se endereça a aparência, o amor se endereça a imagem, a imagem de si, a qual adoramos, como ele desenvolvera no Seminário 23. Mas se ele retoma esse estatuto narcísico do amor nessa primeira lição, ele vai bem mais além dessa primeira versão já presente no Seminário 11, quando ele considera que o amor de transferência é um amor enganador.

Eu teria mais a acrescentar, mas para não ficar mais extenso, vou terminar por aqui e deixar a discussão para podermos avançar, obrigada!

 

[1] LACAN J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, JZE, 2008.

[2] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana Online, [s. l.], ano 3, n. 7, p. 1-49, mar. 2012. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_ do_gozo.pdf. Acessado em 3 de outubro de 2021. Texto trabalhado no seminário de membro em 2020.

[3] MILLER, Jacques-Alain. O Inconsciente e o corpo falante. Disponível em https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9. Acessado em 3 de outubro de 2021. Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller por ocasião do encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), em 17 de abril de 2014, apresentando o tema de seu X Congresso

[4] ROY, Daniel. “Os seis Paradigmas do gozo” – Quarta conferencia. In https://radiolacan.com/pt/podcast/as-conferencias-do-campo-freudiano-do-ciclo-de-2015-2016-os-paradigmas-do-gozo-em-lacan/3. Acessado em 3 de outubro de 2021.

[5] MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana Online, [s. l.], ano 3, n. 7, p. 1-49, mar. 2012. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_ do_gozo.pdf. Acessado em 3 de outubro de 2021

[6] op cit

[7] ROY, Daniel. “Os seis Paradigmas do gozo” – Quarta conferencia. In https://radiolacan.com/pt/podcast/as-conferencias-do-campo-freudiano-do-ciclo-de-2015-2016-os-paradigmas-do-gozo-em-lacan/3. Acessado em 3 de outubro de 2021.

[8]  LACAN, J. (1971-1972). Os corpos aprisionados pelo discurso. In J. Lacan, …ou pior. O Seminário. Livro 19 pp.220. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

[9] Pp 226