Texto que será publicado em entrevários IV

Psicoses Ordinárias – uma Abordagem Borromeana

Seminário inglês em Paris, 7 de julho 2008.

Pierre Skriabine

tradução- Veridiana Marucio

 

Bem, como vocês sabem, eu devo apresentar aqui de um ponto de vista topológico a estrutura das psicoses ordinárias. Temo não poder, portanto, evitar retomar algumas bases da topologia borromeana de Lacan, e eu peço desculpas àqueles que já são muito familiarizados com essas questões.

Mas, talvez seja um bom exercício questionar sempre os princípios fundadores dessa abordagem topológica e estrutural e colocar em prática suas saídas clínicas – ou seja, reconhecendo o quão profundamente isso pode nos guiar e sustentar nossa própria prática como psicanalistas.

Eu não farei aqui nenhuma descrição histórica da maneira pela qual Lacan trabalhou suas conceitualizações topológicas ao longo de todo seu desenvolvimento teórico. Vamos nos focar diretamente no seu último ensino, que dá uma nova luz no essencial de suas conquistas teóricas, tendo como base os nós.

O essencial, isso também significa que é bastante simples, mesmo que vocês ainda não estejam convencidos.

I. Introduzindo a Topologia Borromeana

Doze itens curtos para se lembrar:

  1. O Outro com O maiúsculo não existe. Sendo por excelência um fato de linguagem, ele é estruturalmente faltante, incompleto ou inconsistente, e Lacan enfatizou todas as conseqüências disso. Isso significa que toda a experiência humana pode ser referida a essas três categorias distinguidas por Lacan como Real, Simbólico e Imaginário.
  2. Essas três categorias são radicalmente heterogêneas, elas não têm nada em comum.
  3. Manter essas três categorias unidas é, entretanto, uma necessidade do sujeito para se manter na chamada “realidade humana”, ou seja, no universo dos discursos (Mestre, Universidade, Histérico e Analítico). Para fazer essa realidade consistir em suas três dimensões (R, S, I), criar e sustentar o laço social com as criaturas camaradas, o sujeito precisa encontrar ou construir uma medida comum, unindo Real, Simbólico e Imaginário.
  4. Esta “realidade humana” não tem nenhuma existência intrínseca. Ela é somente um véu entrelaçado com o Simbólico e o Imaginário usado pelo sujeito para ocultar o Real com o intuito de se proteger de sua dimensão insuportável.
  5. Essa proteção por meio da qual a emergência do discurso e a formação do laço social são permitidas, implica, em contrapartida, uma limitação de um gozo que de outra forma seria ilimitado – o gozo da mãe como objeto primário. Tal limitação é obtida pela função do Pai enquanto interditor, proibidor do incesto e estabelecedor da lei simbólica.
  6. Deste modo se opera a metáfora paterna, substituindo o Desejo da Mãe pelo Nome do Pai, tornando possível o acesso ao discurso em troca de uma perda de gozo: Isso é em palavras lacanianas o quê opera a castração freudiana.
  7. Portanto, o Nome do Pai como reconhecimento da realidade da castração dá ao ser falante uma entrada ao universo do discurso, assegura uma proteção contra o Real e permite que ele se inscreva no laço social.
  8. Em outras palavras, para qualquer sujeito – ou seja, para cada sujeito, um por um – a função do Nome do Pai consiste em fazer o Real, o Simbólico e o Imaginário ficarem juntos, e dessa forma o introduzindo a uma não existente, porém necessária, realidade- único lugar onde qualquer laço social pode subsistir para um ser falante.
  9. Porém, como já percebemos, o Outro com O maiúsculo, bem como o sujeito, têm uma falha, é incompleto ou inconsistente. Esta é uma conseqüência da estrutura diferencial do significante que exclui qualquer referência absoluta.
  10. Como o Outro não existe, não existe Outro sem falha, não existe garantia última. O significante, que deveria ser a garantia do Outro, falta no Outro. Linguagem implica não garantia. Deus não pode garantir nem ele mesmo nem o Pai. Não existe nenhum Nome do Pai como tal, nenhum Nome do Pai imanente. Cada sujeito tem que implementar para si mesmo um nome do pai. Isso significa que não temos outra escolha a não ser fazer sem ele (sem o Nome do Pai como garantia não existente) com a condição de que façamos uso dele. (colocamos sua função no lugar)
  11. Conclusão: A falha do Nome do Pai é estrutural. Não existe laço comum “inato”, nenhuma “normalidade” mítica capaz de unir Real, Simbólico e Imaginário graças a um enodamento bem sucedido. Resumindo, Foraclusão é a regra, somos todos fracos de espírito, a debilidade é generalizada. Isso nos leva a uma clínica universal da ilusão. Isso também significa que a psicose é o status ordinário, nosso status “nativo”, se assim posso dizer. É menos tranqüilizador do que era o mito freudiano do Pai.
  12. Conseqüência: o que resta como solução para cada um dos sujeitos é inventar sua própria solução para compensar essa falta estrutural e construir, como suplementação, algum laço a fim de permitir que Real, Simbólico e Imaginário se mantenham unidos. Mas alguns sujeitos simplesmente não conseguem ter sucesso nisso – esse é o caso das psicoses ordinárias, e para outros, esses empregos improvisados não funcionam adequadamente.

II. O nó borromeano

Isso é o que se demonstra através da topologia do nó borromeano, O nó borromeano é um esforço para se pensar a estrutura fora de qualquer referência ao Outro, com a ajuda das três únicas categorias da experiência analítica: Real, Simbólico e Imaginário, na medida em que são basicamente heterogêneos.

 

 

  1. Na topologia dos nós, da maneira que desenvolveu Lacan, os três laços do nó borromeano demonstram a estrutura faltante, aquela que não existe: figuraria aí o Nome do pai, se houvesse um. Os três laços do nó borromeano, como solução perfeita é sempre faltante, ela está estruturalmente sob a foraclusão, assim como o Nome do Pai. E é por isso que nos interessa.
    Precisamos de três elementos – R, S, e I – para fazer o nó borromeano. Cada um dos laços que sustenta R, S e I não está entrelaçado com nenhum dos dois outros, eles são topologicamente equivalentes, quaisquer dois são independentes e ainda existem quatro elementos, o nó borromeano é o quarto. Ainda, cada um dos três S, R ou I, enlaça os dois restantes e permite ao nó de consistir; cada um, como um quarto implícito, opera o enlaçamento borromeano. Quebrando qualquer um deles o conjunto se desenlaça.
  1. Há muitas maneiras de fracassar o enlaçamento. Isso significa que existem muitos nomes do pai. Lacan necessita dessa topologia para demonstrar sua multiplicidade e se o Nome do Pai é sempre faltante, inúmeros são os nomes do pai capazes de suplementar essa falha.
  2. Lacan aponta que para Freud, R, S, e I são deixados soltos, independentes, à deriva; e para fazer essa construção teórica se sustentar, Freud precisa de algo a mais que ele nomeia de “realidade psíquica”, e que nada mais é do que o Complexo de Édipo: um quarto termo que faz um nó dos três termos independentes, os três laços independentes, R, S e I (Seminário S.I. 14 de janeiro de 1975).
    Portanto, precisamos de pelo menos um quarto elemento para sustentar a forclusão original e obter uma solução borromeana. Em seu seminário RSI, Lacan demonstra diferentes tipos de elementos que suplementam, os nomes do pai, capazes de restaurar um enlaçamento borromeano de quatro laços: existem três tipos privilegiados, o primeiro deles é o sintoma.

    Abaixo segue outra representação deste mesmo nó de quatro laços, que nos permite compreender melhor como esse quarto como suplemento para um dos três, R, S, ou I, restaura uma amarração borromeana.

  1. O quarto elemento entra aqui para suplementar o Simbólico com sua função primária, a de “dar um nome”, a nomeação – que dá o nome ao real não dizível; a suplência é nomeadamente o que responde a S de A barrado, à falha do Outro, à falta de um significante, de um nome.
    Mais geralmente o quarto anel do nó, Lacan complementa, suplementa um dos três em sua função primária, que é nomear (nomeação). Para dizer isso de outra maneira, é no nomear, na nomeação que a suplência reside verdadeiramente, na medida em que isso responde à falha do Outro.

    Portanto Lacan pode propor “Três formas do Nome-do-Pai, as que nomeiam o imaginário, o simbólico, e o real” (R.S.I., 18/03/75). Ele então especifica que “não é somente o simbólico que tem o privilégio dos Nomes do Pai, a nomeação não tem que estar ligada ao furo do simbólico” (R.S.I., 15/04/75). 5

    A inibição como nomeação do imaginário e a angústia como nomeação do real são, portanto, adicionados ao sintoma como nomeação do simbólico: isso é o que Lacan indica no final do seu Seminário R.S.I. Essas são as três formas básicas dos nomes – do- pai.

  1. Porém, existem outras maneiras do sujeito se proteger contra o Real e fazer o Real, Simbólico e Imaginário ficarem juntos. A solução reparadora de Joyce é muito ilustrativa. O sinthoma.
    O “ego” produzido por Joyce vem para reparar o erro no próprio lugar onde ele ocorre. Esse “ego” é a invenção literária de Joyce. É o nome do pai que ele se apóia, que ele usa para se fazer um nome. Com sua arte, com sua escrita onde o significado é recheado de significante, ele faz esse tecido. Ele enlaça o imaginário que não era para ele ligado a nada, ao Simbólico.

    Sua escrita é seu tecido protetor, ela tem, diz Lacan, uma função reparadora. A escrita de Joyce é seu tecido protetor contra o gozo que permanece preso, cifrado sob suas diferentes formas dentro do tecido. Isso, entretanto, mantém uma solução do tipo “faça você mesmo” que deixa algumas marcas, entre elas o entrelaçamento de R e S.

  1. Mas existem muitas outras maniera de manter R, S, e I unidos: diversos enodamentos não borromeanos, entrelaçamentos, reparações locais, continuidade entre R, S e I, e vários “patchworks”, de reparações trôpegas ou defeituosas que não são sempre suficientes para proteger o sujeito do Real e do Gozo. Isso nos leva a reformular toda nossa clínica diferencial.

 

III. Uma clínica diferencial renovada

 

 

 

IV. Psicoses Ordinárias

Na clínica diferencial, à qual Lacan nos introduz, mais do que uma distinção bem clara entre as neuroses e as psicoses, nós temos uma série de variações na estrutura do nó de quatro laços, borromeano ou não, que também nos presta conta das neuroses e das psicoses em seu sentido tradicional – o da “questão preliminar…”, como aquilo que chamamos de “psicoses não desencadeadas”, casos mais difíceis de classificar, onde as estruturas possíveis são reveladas pelo nó de quatro laços.

Lacan nós dá aí as bases de uma nova clínica diferencial completamente diferente, que ainda está para ser feita, uma clínica de suplências referida ao nó borromeano.

A clínica mostra que as psicoses ordinárias muito comumente se mantém despercebidas pela família do sujeito ou pelo círculo de amigos. Além disso, o sujeito era percebido como bem normal, mesmo especialmente normal, até que alguns problemas em seu comportamento aparecem repentinamente.

Isso foi enfatizado pela apresentação de pacientes de Lacan em Sainte Anne por muitos anos, e J.A.Miller fez um impressionante resumo desta experiência em um artigo publicado em Ornicar? n°10, “Lições de apresentação de paciente”, 1977.

Entre essas “pessoas loucas normais que nos rodeiam”, como diz Lacan, entre esses sujeitos ordinários que ele considerou como “normais”, i.e. Tão basicamente fracos de espírito como nossa posição “nativa” é, como conseqüência da falha estrutural do Nome do Pai e da concomitante debilidade generalizada, bem, entre essas pessoas Lacan comenta o caso de uma mulher, como relata J.A.M.: “É difícil distinguir os limites da doença mental… Essa pessoa não tem a menor idéia do corpo que deve colocar sob seu vestido, não tem ninguém para habitar esse vestido” e, além disso: “seu ser é puro semblante: suas identificações, se eu posso dizer isso, falharam ao precipitar seu ego, seu self; ninguém; isto é debilidade, se a debilidade consiste em não estar inscrito em nenhum discurso”; e ainda “Sem S¹, e como resultado nada para recheá-la com qualquer substância”.

Bem, eu posso testemunhar, eu tive que trabalhar com essa paciente nesse período, o caso é exemplar. Em seu cotidiano em um contexto profissional, ela parecia uma pessoa simples, ordinária e um pouco fraca de espírito. Se R, S e I não se mantêm realmente unidos, se eles não estão realmente ligados, eles podem, todavia, parecer perfeitamente ligados, porém como uma mera imagem, como uma sombra projetada dos três laços separados, mas superpostos.

Para respeitar a conformidade com a forma perfeita, para parecer absolutamente normal, ou até se comportar no dia a dia sem maiores problemas, isso não implica nenhum enodamento. Algumas gotas de cola, ou dois ou três pedaços de fita adesiva, se eu posso ousar tal metáfora, poderiam ser suficiente.

R, S e I aparentam estar muito bem unidos; mesmo unidos demais. O sujeito parece às vezes também adequado demais. Não existe nenhuma lacuna entre o modelo social e a aparência dada pelo sujeito.

Este é um dos elementos característicos das psicoses ordinárias: como a função limitadora, interditora e proibidora do nome do pai não foi introjetada pelo sujeito, talvez nem mesmo reconhecida, nem mesmo percebida, o sujeito se contenta em fazer um “como se”, dando uma aparência absolutamente e socialmente adequada.

Porém, isso pode não durar muito tempo ou não resistir a uma situação realmente conflitante. Esses sujeitos mostram frequentemente uma preocupação com relação à aparência dos outros. Qualquer desajustamento na aparência do outro no sujeito, e a aparência do pai vem à cena, e o sujeito tem um colapso…

 

 

Um texto nos é aqui especialmente esclarecedor – é o primeiro desenvolvimento de Lacan da clínica diferencial, nomeado “Complexos Familiares” publicado em 1938. Lacan mostra nesse texto em uma escala os estágios e as formas do objeto, bem como os pontos de parada, e as categorias clínicas correspondentes. Aqui está o esquema correspondente de J.A.Miller. Vocês podem encontrá-lo em Ornicar? n°44

Tal esquema nos ajuda a encontrar a marcas de um sujeito na clínica por meios do objeto, pelo estatuto do objeto de ilusão. Lacan está enfatizando aqui que este objeto, este semblante de objeto, é para o psicótico uma mera forma, não importa se está vazio.

E é precisamente quando este artefato formal, este semblante, falha ou não funciona, ou não é mais duradouro, que a psicose eclode. Em outras palavras, é quando o objeto como real irrompe que o semblante de objeto no qual o sujeito se apoiava desmorona, e o próprio sujeito eclode de sua posição imaginária, da posição que ele havia se conformado. Esse momento, diz Lacan, é um ponto de retorno.

A psicose se desencadeia quando o sujeito psicótico passa uma vez mais esse ponto de onde se levanta a figura do Pai; ele já passou uma vez por esse ponto sem danos, enquanto ele se conformava com uma forma, com uma mera imagem, transformando essa imagem em uma armadura imaginária. Isto poderia evocar um personagem familiar de desenho animado correndo no precipício e que continua a correr até que algum evento o faz perceber que não tem mais chão embaixo de seus pés.

Mas vamos citar Lacan: “É nessa reprodução que se esmigalha a conformidade assumida superficialmente (isso significa que o sujeito tem se conformado com a “boa forma”, a esperada dele, que era nada mais do que semblante e aparência ilusória) pelos meios dos quais o sujeito até então tem dissimulado sua relação narcísica com a realidade”.

O sujeito estava simplesmente interpretando, simplesmente fingindo que era capaz de fazer R, S e I ficarem juntos. Mas ele continua na verdade sob a prevalência do narcisismo e do objeto materno como meio de satisfazer seu desejo, rejeitando a autoridade idealizada representada pelo pai. E como a prevalência da forma entra em colapso frente ao encontro com o objeto, temos o desencadeamento da psicose: precisamente onde se revela que atrás do semblante da conformidade não ocorreu a implementação do nome do pai como autoridade idealizada permitindo a sublimação e o estabelecimento de um laço social regulado.

Temos aqui, nos primeiros anos de Lacan como um jovem psicanalista, claramente preconcebido os elementos característicos das psicoses ordinárias, cuja estrutura teve que esperar a topologia borromeana de seu último trabalho teórico para ser tão claramente esclarecida.