Eixo 6 – “Da miséria neurótica à miséria banal”

Psicose, sintoma e felicidade.

 

Relatora: Patrícia F. Bichara.

Autores: Bianca Vitullo Bedin, Francine Negrão Granato, Geórgia De Sordi, Heloisa Novaes de Miranda Amaral, Telma Cristina Palmieri, Veridiana Marucio.

 

No texto de apresentação do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano “Psicanálise e felicidade – sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais”, coloca-se a proposta de um trabalho sobre a felicidade em suas diferentes versões, por exemplo, a cura para o médico, a normalidade para a cultura, a bem-aventurança para a religião e as utopias para a política.

Podemos pensar que a partir da Reforma Psiquiátrica o ideal de normalidade é uma promessa de felicidade?

O século XX foi marcado por revoluções culturais que prometiam ‘senão a felicidade, pelo menos a atenuação do sofrimento causado pela intolerância religiosa, social e política: o movimento de libertação das mulheres e a implantação da cultura gay (…) o vertiginoso progresso da ciência também prometia cura para todos os males’1.

A reforma psiquiátrica se dá no bojo destes acontecimentos, momento favorável para os movimentos de direitos humanos, para a política de inclusão e não-segregação, acompanhados de esperança na eficácia da ciência através das imagens do cérebro e do uso de neurolépticos.

Para a ciência o “expert” sabe o que é a felicidade, mas Viganó2 nos adverte, “um programa de vida imposto” pode levar a outras formas de exclusão, por exemplo, a cronicidade, como forma de segregação, “ficar com ele [o psicótico] sem o discurso é uma forma de exclusão e segregação”. Podemos acrescentar com Laurent4 que dar lugar é dar a palavra. Foi dessa maneira que a saúde mental pôde intervir no contexto psiquiátrico em que esse campo surgiu.

A reforma psiquiátrica ao propor saúde mental para-todos desconsidera a questão libidinal em jogo. Para a reforma a felicidade é a saúde mental. Silva3 no texto “Reflexões sobre a reforma psiquiátrica a partir da vivência Cândido Ferreira”, aponta para o risco de se reduzir à técnica o novo que a reforma pôde favorecer, ou seja, o lugar da palavra e a busca pela singularidade não se alcança com um mero estabelecimento de práticas consolidadas. Não há universal do bem.

Nesse sentido podemos pensar que a saúde mental está do lado da psicoterapia, e quanto a isso Miller5 diz: “o psicoterapeuta é aquele que acredita que o sintoma é algo que não vai bem” e, portanto deve ser eliminado. Para a psicanálise o sintoma é uma solução.

O sintoma, então na psicose, “o delírio, a fragmentação do corpo, autismo, melancolia, são algumas estratégias para se curar (…) fora da comunicação, do comum do simbólico”5, mas isso que é o esforço do sujeito “para liberar-se da dependência devida à foraclusão” é visto, na cultura da normalidade, na prática da saúde mental, justamente como o problema a ser eliminado, para que o sujeito seja feliz.

Assim, a partir da psicanálise, mesmo o tratamento no campo da saúde mental, não visa à eliminação do sintoma. Não se trata de eliminar o sintoma, como propõe a medicina, as psicoterapias e a saúde mental, mas também não se trata, como poderia parecer, de deixar o sujeito abandonado ao seu próprio gozo.

Graciela Bródsky7 em evento preparatório na Seção São Paulo trás o exemplo de uma mulher psicótica cujo sintoma era “não chegar até o final”, um sintoma que diz de um gozo não localizado. Ela aponta a importância de manter o sintoma. Na psicose “há que se ter outro freio, ou então é melhor não chegar até o final”.

A psicose denuncia o ideal de felicidade da saúde mental, já que o universal nessa estrutura é impensável. A reforma psiquiátrica possibilitou que diversos doentes mentais tivessem acesso a algum tipo de laço social, a partir das práticas propostas neste campo. A liberdade de ir e vir, o pertencimento ao território, o direito à cidadania etc., contribuíram e muito para o acesso de certos psicóticos à articulação com o Outro. A invenção de sintomas por parte desses pacientes demonstra a eficácia dessa prática. Porém, é a partir da orientação psicanalítica que podemos retirar daí as conseqüências. Apresentaremos alguns recortes clínicos para ilustrar tal afirmativa e promover a discussão sobre a promessa de felicidade da reforma psiquiátrica. Ao mesmo tempo em que não se pretende eliminar o sintoma, propõe-se moderar o gozo.

  1. G. faz tratamento em um centro de atenção psicossocial, dispositivo da reforma psiquiátrica brasileira. Numa crise maníaca compra um aparelho celular para falar com os filhos, conta sobre a compra do aparelho para um companheiro de pensão que sabidamente realiza furtos, o celular desaparece do quarto, a situação se repete algumas vezes. Quando questionado, responde: “não consigo não contar, o peixe morre pela boca”. Assim faz com outros objetos e com seu salário, contrai dívidas e consome descontroladamente. Nesse ponto, a praticante determina que fique em leito–noite*, causando espanto na equipe pelo fato do paciente ser considerado autônomo e esclarecido. O paciente define a praticante como “Hitler”, diante da intervenção. Passados quinze minutos volta e a agradece, solicita que a praticante o ajude a resolver o problema com as dívidas, o que efetivamente acontece. Trata-se de um exemplo de moderação de gozo.
    Diante da foraclusão, G. responde de duas maneiras, em mania – “posso tudo”, na depressão – ”não posso nada”.
    Em mania, G. tenta corresponder aos ideais de normalidade e imperativos de mercado, ou seja, ser bom pai, que presenteia os filhos e trabalha; numa tentativa de fazer laços. Trata-se de uma construção que dá a impressão de que tudo vai bem. Alterna o “posso tudo” com “não posso nada”, em episódios depressivos onde se “deixa largar”. Não come, não toma banho, e necessita de cuidados intensivos. Essa alternância modera um gozo que não ultrapassa o limite.
  2. N. há alguns anos sonha obter de João Havelange, celebridade do futebol brasileiro, uma coleção de camisas da seleção, que pretende leiloar e transformar em dinheiro para a construção de uma ONG para crianças carentes e abandonadas. Gasta algum dinheiro enviando cartas e presentes para esta celebridade que na maior parte das vezes não responde ou responde dizendo que não é mais responsável e nada pode fazer. A orientação do tratamento é mantê-lo nesta busca o mais discreto possível.
  3. B. sonha obter a casa própria. Quando está próximo de realizar este sonha, recua, mas não desiste.
  4. J. pinta traços de uma “escrita invisível”, pinta para que o outro leia. O resultado da leitura nunca é explicitado pela equipe.
    Dessa forma acreditamos que a saúde mental pode favorecer um bom encontro, uma contingência que possa fazer do psicótico um sujeito mais feliz, não sem a orientação lacaniana.

Referências Bibliográficas

1) Fernando Coutinho. Felicidade: o que a psicanálise tem a oferecer ao sujeito contemporâneo, como tratamento do seu mal estar? Recuperado em 13/09/2008: www.ebp.org.br.

2) Viganò, C. (1999) “A construção do caso clínico em saúde mental”, Curinga, (13), p.50.

3) Silva, R. F. da. (2007). “Reflexões sobre a reforma psiquiátrica a partir da vivência Cândido Ferreira”. In Merhy, E. E. & Amaral, H. (org). “A reforma psiquiátrica no Cotidiano II”. São Paulo: Hucitec.

4) Éric Laurent. Transformamos o corpo humano num novo Deus. Recuperado em 13/09/2008: www.ebp.org.br.

5) Miller, J-A. (2001) « Le clivage psychanalyse et psychotherapie », Mental, (9), p. 10.

6) Viganò, op. cit., p. 52.

7) Brodsky, G. « Felicidade : que esperar da psicanálise? Da demanda ao analista à saída da experiência ».Seminário realizado na EBP – SP, em evento preparatório para o XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano “Psicanálise e felicidade – sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais”, em 27 de setembro de 2008.

*           Dispositivo da Reforma Psiquiátrica para pacientes em crise.